Durante primeira sessão remota 100% acessível, Senado debate educação bilíngue para surdos, junto de especialistas e representantes da comunidade surda.
Senadores, especialistas em educação e representantes da comunidade surda debateram na última sexta-feira (21), sobre o PL 4.909/2020 ↗. O Projeto de Lei altera a Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional e classifica a educação bilíngue de surdos como modalidade de ensino independente.
De acordo com a Agência Senado, usando o lema do movimento que defende os direitos da pessoa com deficiência, “Nada sobre nós sem nós”, grande parte dos debatedores defendeu a aprovação do texto, para garantir o ensino bilíngue nas escolas.
A sessão temática de debates, realizada de forma remota, fica marcada no Senado Federal como a primeira com 100% de acessibilidade. Iniciativa da senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), a sessão contou com recursos de Libras, audiodescrição, legendagem e Tadoma – método de comunicação utilizado pela pessoa surdocega, que coloca a mão próximo a boca e queixo do falante, para entender o que está sendo dito, através das vibrações geradas pela voz.
Assista ao vídeo da sessão
A proposta havia sido pautada na sessão do Plenário do dia 12 de maio. Mas a votação foi adiada para 25 de maio, após pedido da senadora Mara Gabrilli para aprofundar o debate, e por apelo de entidades para que a audiência fosse pública.
Naquela primeira ocasião, a parlamentar destacou a necessidade de adaptar a educação para sinalizados, bilíngues e oralizados — pessoas que utilizam qualquer língua oral para se comunicar por meio da leitura labial, além da leitura e da escrita.
“Vamos ampliar o debate sobre essa mudança tão profunda na legislação. Seria apenas para ouvir a diversidade dentro da comunidade surda”, solicitou a senadora na sessão plenária do dia 12 de maio.
Entendendo o Projeto de Educação Bilíngue
De autoria do senador Flávio Arns (Podemos-PR), a proposta não apenas classifica a educação bilíngue de surdos como modalidade de ensino independente, mas dá garantias de atendimento especializado e programas de ensino e pesquisa específicos. Por isso, a medida estabelece que a educação bilíngue das pessoas surdas tenha a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como primeira língua e o português escrito como segunda.
Pelo projeto, também será incluído na LDB o capítulo “Da Educação Bilíngue de Surdos”, que prevê que este ensino seja ministrado em escolas bilíngues de surdos, classes bilíngues de surdos, escolas comuns ou em polos de educação bilíngue de surdos. O público-alvo são alunos surdos, surdocegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com deficiências associadas.
O relator da matéria é o senador Styvenson Valentim (Podemos-RN).
A sessão no Plenário Virtual, na última sexta-feira (21), aconteceu às 9h com transmissão pelo canal da TV Senado no YouTube ↗ e foi aberta à participação do público pelo e-Cidadania ↗.
Para os participantes, a iniciativa é um passo importante para garantir uma política pública às pessoas surdas, oferecendo base linguística para que a inclusão possa acontecer de verdade.
A Professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Marisa Dias Lima, que também é surda, explicou que a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos garante que, dentro da educação, é preciso haver um incentivo ao direito linguístico do estudante e à sua cultura. Para ela, a inclusão de novos itens na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei 9.394/1996 ↗) vai promover a inclusão e o desenvolvimento da educação dos surdos.
“É preciso ver que, dentro da LDB, as crianças surdas precisam ser atendidas porque elas não têm escola. A LDB não está garantindo esses espaços com materiais específicos que garantam a cultura e a educação linguística dos surdos; profissionais formados para, especificamente, entender e conhecer a Libras. Nós temos de entender a cultura. Já está preservada a cultura dos indígenas, dos quilombolas, mas a LDB ainda não incluiu os surdos. Então, é preciso fazer essa atualização”, explicou Marisa.
Já a diretora de Políticas Educacionais e Linguísticas dos Surdos da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) ↗, Flaviane Reis, que também é surda, destacou que todas as pessoas com deficiência possuem uma língua, mas que a identidade linguística do surdo é própria. Para ela, o sistema inclusivo não funcionou e acabou afastando os estudantes surdos das escolas e das universidades no país.
“E é preciso informar que o Projeto de Lei 4.909 ↗, que garante a modalidade do ensino regular como educação bilíngue de surdos no ensino regular, as instituições, as universidades. Há muitas instituições, pesquisadores, acadêmicos, profissionais que reconhecem essa importância para a comunidade surda. E é importante incluir essa modalidade na LDB”, defendeu Flaviane. O texto em discussão foi apresentado pela Feneis ao senador Flávio Arns.
Diretora de Políticas de Educação Bilíngue de Surdos da Secretaria de Modalidades Especializadas do Ministério da Educação, Crisiane Nunez Bez Batti, ressaltou que essa luta busca assegurar à pessoa com deficiência auditiva o direito de adquirir, utilizar e receber a língua que é confortável.
“Nós queremos pedir: por favor, coloquem-se em nosso lugar e respeitem o apelo da comunidade surda pela criação da modalidade bilíngue, porque somente assim nós vamos garantir uma educação bilíngue de qualidade para a formação de cidadãos plenos e autônomos. A nossa luta é pelo direito linguístico. E essa audiência temática é para mostrar que a Libras é o nosso direito. Então, novamente eu peço: ouçam a comunidade surda, votem o PL”, pediu Crisiane.
Pessoas surdas oralizadas
Já o vice-presidente da Associação Nacional dos Surdos Oralizados (Anaso ↗) e presidente da Associação de Deficientes Auditivos, Pais, Amigos e Usuários de Implante Coclear do Pará (Adeipa), Eduardo Moreira de Souza, pediu que o projeto seja ajustado colocando a Libras como primeira língua apenas para o surdo sinalizante, já que, conforme explicou, o surdo oralizado se expressa no idioma oficial do nosso país por terem tido contato com a língua antes da surdez.
“Ao ingressar na escola regular pública ou privada e no ensino superior, a única coisa que os surdos oralizados possuem de direito é a Libras, e muitos são pressionados por escolas e faculdades a aprenderem como primeira língua, pois há um grande estigma em sociedade de que os surdos são só aqueles que se expressam por Libras. Ledo engano!”, ressaltou ao pedir que as demandas educacionais dos surdos oralizados sejam atendidas pelo poder público.
Segregação
Única a se posicionar contra o projeto, a mestre e doutora em educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Rosangela Machado, disse que a iniciativa não reconhece os benefícios e a potência da escola comum para os estudantes surdos. Ela lamentou não identificar empenho por parte da Feneis para melhorar a escola regular e pediu a suspensão da tramitação do texto por prever que a alteração na LDB vai incentivar a segregação desses estudantes ao optarem por escolas especiais.
“Temos dificuldades, ainda há muitas, mas elas já foram mais intensas, como, por exemplo, a falta de profissionais intérpretes qualificados, a falta de professores de Libras. Estamos em outros patamares e precisamos avançar mais ainda, não para espaços segregados como as escolas e classes para surdos. O encontro entre estudantes surdos e ouvintes vai além da experiência linguística, revela um novo tempo, uma preocupação com o outro, onde caminhamos juntos, submetendo-nos à construção desse caminho e cuidando para que o caminho, com os seus erros e acertos, seja feito com a devida atenção”, observou.
Tanto o autor da matéria como o relator elogiaram o debate como forma de avançar e promover os ajustes necessários ao texto. Flávio Arns enfatizou a demanda dos surdos oralizados e sinalizou alterações na proposta para atendê-los.
“O Eduardo colocou uma coisa muito importante, nós temos essa diversidade dentro da área da surdez, nós temos as pessoas oralizadas. Ele chamou essa diversidade, a gente tem que sempre levar em conta isso, em qualquer área. Nós temos a área da surdez, os oralizados através de próteses auditivas, de implantes cocleares, de tecnologias dentro da sala de aula e nós não estamos falando dessas pessoas, nós estamos falando das pessoas surdas — vamos usar a expressão sinalizantes”, afirmou o autor.
Sessão 100% acessível
A sessão remota desta sexta-feira foi a primeira 100% acessível do Senado Federal com Libras, audiodescrição e legendagem. Os convidados se expressaram em Libras (Língua Brasileira de Sinais) e tiveram seus próprios intérpretes de voz, além do cuidado de iniciar suas falas descrevendo aos participantes suas características físicas e do ambiente onde se encontravam.
A requerente da sessão, senadora Mara Gabrilli, reconheceu que a o debate ficará para a história como um marco para promoção de uma maior inclusão. “A gente tem nesta sessão todos os recursos de acessibilidade para permitir a ampla participação das pessoas com deficiência”, disse Mara.