Jornalistas debatem sobre políticas DEI no Congresso da Abraji 2025

Painel no Congresso da Abraji 2025, com quatro pessoas jornalistas – incluindo uma em cadeira de rodas – sentadas em frente a uma tela de projeção. (Foto: Luiz Guilherme Lima)

Legenda descritiva: Painel no Congresso da Abraji 2025, com quatro pessoas jornalistas – incluindo uma em cadeira de rodas – sentadas em frente a uma tela de projeção. (Foto: Luiz Guilherme Lima)

Diante do avanço global de ataques às políticas de diversidade, especialistas analisam como as redações brasileiras resistem — ou recuam — na inclusão de vozes plurais.

 

São Paulo, 12 de julho de 2025 – As políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) enfrentam um ataque coordenado no cenário global, intensificado após o presidente Donald Trump extinguir todos os programas de DEI no governo dos EUA com a ordem executiva 14151, em janeiro deste ano. A decisão gerou um efeito cascata: grandes empresas suspenderam iniciativas similares, reverberando no Brasil sob influência do bolsonarismo e da extrema-direita. Apesar disso, comitês de inclusão e programas afirmativos seguem ativos em veículos jornalísticos nacionais. Esse embate ideológico esteve no centro de um dos debates do 20º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji, que discutiu como os ataques às políticas DEI impactam as contratações nas redações brasileiras.

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Em busca de respostas, o debate realizado no dia 10 de julho, na ESPM, contou com a participação de Caê Vatiero, cofundador e diretor institucional da Transmídia; Flávia Lima, editora de diversidade na Folha de S. Paulo; e Lígia Guimarães, líder no programa de trainee voltado para diversidade do Valor Econômico. O moderador do encontro foi Rafael F. Carpi, editor dos sites Jornalista Inclusivo e Dataverso PCD , que já havia conduzido a mesa sobre capacitismo e jornalismo na 18ª edição do Congresso, em 2023.


Jornalistas em roda de conversa durante painel sobre políticas DEI no Congresso da Abraji 2025.
Descrição da imagem: Foto de uma roda de conversa em sala de aula, com quatro jornalistas sentados em frente a uma pequena plateia. Ao fundo, a projeção exibe o título da mesa: “Os ataques às políticas de diversidade impactam nas contratações das redações?”. Os participantes dialogam de forma atenta, com crachás e materiais nas mãos. (Foto: Luiz Guilherme Lima)

Jornalismo trans e comunitário como resposta direta aos ataques anti-DEI

Caê Vatiero é jornalista transmasculino e cofundador da Transmídia , a primeira agência de notícias formada por pessoas trans e travestis. A Transmídia surgiu em 2024 para suprir a carência de cobertura voltada à população trans, com jornalismo focado no combate à desinformação eleitoral e apoio da Énois Jornalismo e do Google News Initiative. Vatiero critica que a mídia tradicional costuma cobrir pessoas trans apenas em casos de violência ou emergência, afirmando que há “uma reparação histórica a ser feita” pelo jornalismo.

Caê, que também é Assessor Pleno de Proteção e Participação Democrática na Artigo 19 Brasil, afirmou durante o debate: “Antes de se preocupar com perder nossos trabalhos, nos preocupamos em consegui-los. Formamos 72 pessoas trans. Eu nunca vi isso”. Com a ascensão de discursos anti-trans globais, ele reforça a importância de redes de apoio comunitário. Seu discurso indica maior conscientização do problema após tais ataques.

Ainda segundo Vatiero, a Transmídia promoveu formação sobre desinformação eleitoral para 100 pessoas (72 delas trans) e lançou canais de checagem (como o “ChecaZap”) para proteger a comunidade. Ele destaca que iniciativas coletivas de jornalistas trans já vinham acontecendo desde 2019 como resposta ao abandono percebido.


Caê defende explicitamente a descentralização e autonomia editorial. Ele ajudou a lançar em 2024 um programa formativo conjunto da Transmídia com a Agência Mural voltado a organizações jornalísticas independentes de várias regiões. Como ele mesmo disse, o objetivo é “descentralizar o conhecimento pensando principalmente em critérios de regionalidade, raça e gênero”. Esse modelo de autonomia (veículos locais, temáticos, independentes) visa aumentar a resiliência diante de ataques ideológicos: ao multiplicar fontes e vozes, dificulta-se a hegemonia de um discurso único.

Vatiero critica a cobertura hegemônica focada em “violência, dor ou superação” de pessoas trans. Com o refluxo do DEI, ele alerta que a falta de diversidade na redação pode levar a narrativas estigmatizantes e superficiais. Seus comentários em debates (como o “Jornalismo Sem Trégua”, novembro/2024) reforçam que cabe às próprias comunidades trans criar espaços (como fez a Transmídia) para contar suas histórias com profundidade.

Como a Folha institucionalizou a diversidade frente ao conservadorismo

Flávia Lima, secretária-assistente de Redação e coordenadora das iniciativas de diversidade da Folha de S.Paulo, destaca que o jornal aumentou a quantidade de jornalistas mulheres e pessoas não brancas de 10% para 20%, um avanço significativo, disse ela, para um veículo de 100 anos. “Entrei no elevador em um dia qualquer de trabalho e reparei que todas as pessoas eram mulheres negras. Quando isso aconteceria em um jornal tradicional como a Folha?”.


Formada em Ciências Sociais e em Direito, Flávia foi ombudsman da Folha (2019–2021) e repórter de economia por 20 anos. Em 2021 ela assumiu a editoria de Diversidade e lançou o primeiro programa de trainees voltado exclusivamente a jornalistas negros. Ela destaca que a Folha reconhece a necessidade de ampliar seu perfil: “o jornalismo sempre falou em nome de uma classe média masculina e branca”. Sob sua liderança, a Folha criou em 2022 um Comitê de Inclusão e Equidade (formado por 17 jornalistas) para promover a diversidade interna. Esse comitê discutiu não só cobertura e fontes, mas também censos internos de redação.

Flávia Lima afirma que a Folha não interrompeu ou diminuiu suas iniciativas de diversidade no atual contexto conservador. Pelo contrário, ela destaca que “o diretor da Folha deixou claro que a política de diversidade seguiria como prioridade”, mesmo diante dos retrocessos nos EUA. “Nós ocupamos esses espaços. E eles não vão nos tirar. Temos vínculos com essas pessoas”, afirmou. Na Folha, Flávia continua a coordenar treinamentos para negros (já na quinta edição) e monitoramento de autoria e fontes. 

O Comitê de Inclusão e Equidade foi criado após o episódio Risério (jan/2022) e realizou reuniões com a diretoria. A existência do grupo – formalizado na estrutura da redação – indica força institucional, ainda que temas sensíveis (como pautas raciais) tenham de passar por avaliação prévia da Secretaria de Redação. Flávia, que media seminário interno sobre pluralismo, segue ativamente envolvida nas discussões de diversidade do jornal.

Com o avanço do discurso anti-DEI, ela própria defende que aumentar diversidade é crucial para o futuro do jornal. A presença do Comitê e dos programas sugere empenho em reverter o quadro branco histórico, apesar das resistências culturais.


A Folha, sob sua liderança, tem buscado diversificar pautas e fontes. A própria pesquisa interna (censo pela Datafolha) mostra preocupação em entender o perfil dos jornalistas. Até o momento não há sinal público de retração na pluralidade de vozes; pelo contrário, Flávia enfatiza que o leitorado da Folha já não é mais apenas classe média branca. Ainda assim, ela admite que coberturas sobre identidades enfrentam debates intensos, mas defende seguir ampliando pautas mesmo em ambiente polarizado.

As tensões ideológicas não parecem ter afetado abertamente a autonomia da redação. Pelo contrário, a direção do jornal reiterou abertura para reavaliar posições (como a antiga oposição às cotas). O fato de a Folha discutir transparência (possibilidade de publicar dados de seu censo interno) e manter encontros regulares do Comitê sugere que a redação procura manter autonomia para fortalecer contratações e pautas inclusivas, apesar de eventuais pressões externas.

No Valor, a diversidade resiste por critérios de eficiência e mercado

Jornalista com vasta experiência em veículos como Valor Econômico, G1 e BBC News Brasil, Lígia Guimarães também contribuiu com o debate na Abraji. Formada em Economia, ela dedica-se a temas de desigualdade social, gênero e raça, e atualmente coordena o curso de Jornalismo Econômico do Valor, além de atuar como mentora no ICFJ.

Em artigo de 2025 , o Valor aponta que, embora haja retrocessos globais, a maioria das empresas brasileiras mantém ou intensificou ações DEI. Lígia certamente tem consciência desse contexto: o próprio levantamento “DE&I nas empresas” foi encomendado pelo Valor. Segundo ela, o jornal não retrocedeu nas contratações inclusivas ou pautas identitárias. Pelo contrário, o esforço em mapear empresas sugere o interesse do veículo em diversificar – interpretando a diversidade até como vantagem competitiva.

Embora ela escreva em jornal econômico, não há indícios de autocensura relacionada a questões identitárias. O Valor tende a discutir diversidade sob a ótica de resultado (cursos ou pesquisas internas), e não de agendas políticas partidárias. Mesmo assim, a cobertura de desigualdades pelo jornal tradicionalmente destaca dados e impactos econômicos. Por exemplo, colunistas do Valor já observaram que “diversidade traz lucratividade” , sinalizando um enfoque pragmático. Em síntese, a cobertura do Valor não demonstra recorte regressivo diante do clima conservador; valorizá-la é vista como estratégico.


Como jornalista focada em desigualdade, Lígia tem produzido reportagens que integram raça, gênero e localidade em análises econômicas. Não há mudança de tom em suas matérias, e o jornal como um todo parece valorizar discussões de diversidade empresarial. De modo geral, sem influência direta do debate americano, o Valor focaliza estatísticas e casos nacionais (entrevistas com especialistas de mercado e acadêmicos sobre inclusão), seguindo uma linha analítica própria.

Considerando as práticas da Folha e as análises da própria Lígia, ações potenciais poderiam incluir um censo interno para mapear a diversidade da redação (segundo o exemplo da Folha) e programas de recrutamento focados em grupos sub-representados (por exemplo, bolsas ou estágios para jovens jornalistas negros, periféricos ou com deficiência). Tais medidas são coerentes com suas ênfases econômicas de mercado e poderiam reforçar compromisso institucional com a inclusão.

Segundo Lígia Guimarães, em 2025, o Valor teve sua primeira trainee e repórter trans. Ela também mencionou que o jornal retirou a exigência de domínio da língua inglesa para as vagas do programa de trainee, reconhecendo que isso historicamente limitava o acesso de profissionais negros. Além disso, o Valor passou a oferecer ajuda de custo de transporte aos selecionados, buscando nivelar as condições de acesso ao programa.

Indo Além no Debate Sobre Políticas DEI nas Redações

Em síntese, Caê Vatiero demonstra como o jornalismo independente, ancorado em comunidades sub‑representadas, constrói narrativas mais autênticas e resilientes; Flávia Lima mostra que, em veículos centenários como a Folha, comitês formais e programas de trainees podem reconfigurar estruturas internas e fortalecer vozes negras; e Lígia Guimarães evidencia que, no jornalismo econômico, argumentos pragmáticos sobre ganhos de produtividade e imagem institucional tornam a diversidade uma vantagem competitiva. No entanto, permanece a exclusão velada de jornalistas com deficiência, que raramente são contemplados em políticas DEI e em programas de jornalismo — um apagamento que enfraquece o compromisso real com a inclusão.

Recomendações para redações sob ataque anti‑DEI:

  • Instituir ou fortalecer comitês de Inclusão e Equidade com participação de jornalistas diversos, garantindo poder de decisão e visibilidade institucional.
  • Mapear internamente a diversidade por meio de censos regulares e transparentes, acompanhados de metas e relatórios públicos que demonstrem avanços concretos — incluindo indicadores específicos para profissionais com deficiência.
  • Apoiar iniciativas comunitárias e independentes (workshops, parcerias e formações externas) para descentralizar o conhecimento e ampliar o repertório de pautas, assegurando pluralidade editorial.

Acompanhe no link a cobertura oficial do 20º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, realizada por estudantes, recém-formados e jornalistas da Redação Laboratorial do Repórter do Futuro, sob coordenação da OBORÉ e da Abraji.