Conscientização e Luta contra o capacitismo estrutural

Fotografia do jovem Augusto, que tem síndrome de down, ilustrando o artigo “Conscientização e luta contra o capacitismo estrutural”
Descrição da imagem #PraCegoVer: Ilustra o texto sobre “Conscientização e luta contra o capacitismo estrutural” a fotografia de Augusto, jovem de 24 anos com trissonomia do cromossomo 21. Ele tem a pele branca e cabelos curtos pretos. Está usando camiseta verde, em área externa. Créditos: Acervo pessoal

“O Dia Internacional da Síndrome de Down é dia de conscientização e luta contra o capacitismo estrutural”, afirma Daniela Rorato

Empreendedora social e ativista, Daniela é especializada em políticas públicas para pessoas com deficiência e mãe do Guto, de 24 anos, que tem Síndrome de Down e Transtorno do Espectro Autista (TEA) - nível III

Por Daniela Rorato – Instagram @sejainclusivo

Hoje, 21 de março, é o Dia Mundial da Síndrome de Down, e eu poderia escrever um texto alertando para o fato de que pessoas que têm a síndrome merecem ser respeitadas e incluídas. Mas isso é o óbvio. Ou, eu poderia relatar que essas pessoas “chegam lá”, narrando de uma forma subjetiva que a “diferença é só um cromossomo do amor”, e que todas as pessoas com Síndrome de Down (SD)  se desenvolvem plenamente, com autonomia social e apenas pequenas limitações, mas isto não é verdade. Na verdade, só uma parte das pessoas com SD possuem autonomia funcional normativa, que as permite pertencer à sociedade, seja na escola ou no mercado de trabalho.

Uma síndrome é um conjunto de sintomas, alguns bem graves, e hoje estou aqui para falar daqueles que, à luz da sociedade, “não chegaram lá” e não conseguem pertencer, pois a sociedade não facilita para quem não tem aptidões e habilidades funcionais para absorver o formato padronizado e excludente oferecido por ela. 

É mais ou menos assim: 

Se você consegue absorver a escola e tem capacidade cognitiva para isso, você pertence. Se você tem capacidade para se alfabetizar, formar, entrar para o mercado de trabalho, você vai pertencer a ele. Caso contrário, a estrutura social te exclui. E isso sem dúvida é experimentado por quem tem uma vivência com a deficiência intelectual.

Sou mãe de uma pessoa com síndrome de Down e Transtorno do Espectro Autista (TEA) – Nível III, e que “não chegou lá”, para a sociedade, porque para mim ele tem mil qualidades: generosidade, amorosidade e um sorrisão estampado no rosto para todos. Sempre abraça as pessoas estranhas com afeto. Para o meu coração, Augusto, uma luz motivadora, que me incentiva a lutar por dias mais inclusivos e justos. Mas para o capacitismo estrutural, Augusto é apenas um “retardado”. Com o perdão da grosseria crua, que não é generalizada, mas dirigida àqueles que ainda acham que “retardado mental” é adjetivo para usar como cancelamento na rede social. 

Foto da mãe Daniela abraçada ao filho Augusto, que tem síndrome de down, ilustrando o artigo “Conscientização e luta contra o capacitismo estrutural”
Descrição da imagem #PraCegoVer: A foto em preto e branco mostra Daniela e Augusto abraçados. É uma imagem recente. Ele está de camiseta branca e com o rosto encostado no rosto da mãe, e está sorrindo. Daniela o envolve com um abraço, está de olhos fechados e sorrindo. Créditos: Acervo pessoal

Augusto me deu forças para lutar por uma sociedade que pense na inclusão com empatia verdadeira e leal.  E cobrar incansavelmente dos governos as políticas de atenção para pessoas com deficiência. Sim, a inclusão demanda esforço bilateral: a sociedade civil tem que fazer a sua parte, pois basta olhar para a morosidade legislativa e inexistência de justiça social, para entender que não podemos esperar dos governos. Então, venho aqui, de coração aberto, convidar vocês para refletir coletivamente comigo, através de uma análise social acerca da deficiência e da inclusão, tema que motiva minha vida pessoal e profissional.

Hoje, mamãe pede licença e ocupa seu lugar de fala. Lugar este que deve ser respeitado pois as mães e familiares já batalharam muito fundando entidades de apoio às pessoas com Síndrome de Down neste país, por políticas públicas e pelo cumprimento dos direitos fundamentais. As famílias se desdobram para destruir um sistema social excludente e graças a muita mãe por aí, a pessoa com deficiência intelectual foi lembrada, uma vez que em muitos casos ela não tem autonomia para se auto representar. E também pelo trabalho atuante das famílias, a SD hoje está popularizada. Nunca é demais lembrar que há bem muito pouco tempo a deficiência intelectual era escondida e trancafiada em instituições. Trago duras verdades. E disto trata o capacitismo estrutural: a maior barreira atitudinal enfrentada pelas pessoas com deficiência intelectual.

Meu filho nasceu em uma geração onde as pessoas com SD ainda eram chamadas de “mongoloides”. Inclusive, o obstetra que fez meu parto e veio me dar a notícia disse que “ele era mongoloide e que nunca entraria em uma faculdade, ou teria autonomia”. Eu não havia percebido ainda nenhuma diferença no meu bebê, além de ser bem molinho e ter os olhinhos puxados. E passei três dias na maternidade sem saber que ele tinha SD. Os médicos e minha família esconderam de mim. Eu fiquei lá, amamentando, criando laços e achando meu bebê lindo. Até a hora que o médico veio me dar a notícia, assim, de forma pouco empática. Chorei por três horas e depois tive nojo de mim, por ter chorado a diferença do meu filho.  Prometi que nunca mais faria isto.

Entendendo o capacitismo estrutural desde o início

A história da SD é marcada pelo preconceito. Antigamente, todo médico que descobria um novo quadro sindrômico batizava com seu nome, e assim foi com o Dr. John Langdon Down, na Inglaterra em 1866. Ele achou bizarro, nascer no seio de uma família “europeia ariana”, um bebê com características do povo da Mongólia, fato que chamou de “idiotice mongólica”, uma vez que os mongóis eram considerados uma raça inferior. Ou seja, o termo mongoloide (que muita gente usava até há bem pouco tempo como referência, se as pessoas  tinham ou não SD) foi calcado na xenofobia e no preconceito.

Além catalogar desta forma, Dr. Down nada mais fez pela síndrome. Pouco a estudou e apenas em 1958, o médico francês Jerome Lejeune descobriu que as pessoas descritas pelo Dr. John Langdon Down tinham uma síndrome genética e dedicou-se a estudar os sintomas à busca de melhorias para essas pessoas. 

Dani e Guto, mãe e filho
Descrição da imagem #PraCegoVer: Daniela está em pé segurando Augusto no colo. Ele tem quatro meses. É uma imagem antiga, tirada há 24 anos. Ela está de camiseta azul e tem longos cabelos castanho claro. Augusto usa um macacão azul e os dois estão olhando para a câmera. Créditos: Acervo pessoal

Foi ele quem descobriu a alta incidência de cardiopatias associadas, estudou a hipotonia muscular presente nos pacientes e também a trissomia no par 21 de cromossomos, que foi o motivo pelo qual se escolheu esta data: mês três do calendário, representando a trissomia cromossômica e o dia 21, referente ao par onde ocorre ela ocorre.

Uma síndrome é um conjunto de sintomas e as estatísticas para as pessoas com síndrome de Down também são muito difíceis: além de ser um retardo cognitivo, existem diversos sintomas associados, que atingem diferentemente cada um. A maioria das pessoas com SD tem hipotonia muscular (o tônus flácido, que atinge praticamente todos os órgãos do organismo), cardiopatias e/ou transtornos associados como o autismo, epilepsias e outros problemas neurológicos. Este é o caso do meu filho. Ele tem várias comorbidades acarretadas pela síndrome, e que impediram seu desenvolvimento intelectual e psicomotor. Ele tem um tipo de epilepsia que está associada a uma pequena parcela de pessoas com SD, denominada de Síndrome de West, uma condição rara, inclusive. Em grande número de casos pessoas com SD tem comorbidades associadas, para se ter ideia, cardiopatias atingem cerca de 70% das pessoas nascidas.

Por isso eu acredito ser errado colocar sob holofotes e na publicidade uma normatização da síndrome, destacando apenas as pessoas com habilidades funcionais e cognitivas com um discurso de “ser diferente é normal” ou “é o cromossomo do amor”, sem trazer para o debate as pessoas que nunca estão pertencendo, por não ter capacidade funcional de absorver o formato social padronizado e excludente.  E assim, passar a discutir a inclusão com seriedade, cobrando políticas de atenção para todos os esquecidos. E sim, as pessoas com deficiência intelectual severa não são incluídas dentro deste formato cruel onde quem se integra pelos esforços próprios, é incluído. Este discurso que busca normatizar a deficiência camufla a necessidade urgente da sociedade incluir a todos. Não é a pessoa com deficiência que tem que se integrar, mostrando ser um ‘superador’, uma inspiração ou um campeão cheio de obrigações funcionais. É absolutamente o contrário. É a sociedade que tem que se modificar para incluir a todos. Quem “chega lá” na faculdade, no mercado de trabalho, ou não. E este discurso acaba por ser fruto do capacitismo estrutural, onde as pessoas são incluídas por terem habilidades funcionais. Isso tem acontecido também em relação ao autismo.

“E precisamos estar alertas, de que o caminho é o inverso: todos merecem ser incluídos, em sua neurodiversidade”

Foto do Guto, com síndrome de down e autismo, ilustra o texto da mãe, Conscientização e luta contra o capacitismo estrutural
Descrição da imagem #PraCegoVer: Guto está sorrindo, com os olhos fechados e usa blusa de listras verde e cinza. Filho e mãe estão no Catamarã navegando no Rio Capibaribe, em frente ao Parque das Esculturas de Brennand, em Recife (PE). Créditos: Acervo pessoal

É tipo assim:  se você anda, para que rampa de acesso? Se mantivermos o discurso do “ser diferente é normal” ou do “é apenas um cromossomo do amor”, estaremos sempre alimentando uma estrutura capacitista que prega a normatização social, a padronização. E daí nunca haverá inclusão para todos.

O conceito de normalidade caiu por terra faz tempo. Eu não quero ser normal. Eu quero ser diferente! E quero ser respeitado. Oras!

Todos merecem ser incluídos em sua neurodiversidade. E se hoje é dia da Síndrome de Down, aproveito para lembrar que existe mais de oito mil síndromes catalogadas pela literatura médica. Algumas que nunca ouvimos falar.

Meu filho Augusto não aprendeu a falar, mesmo tendo feito 15 anos de fono, tendo acesso a todas as terapias e medicações. Ele não conquistou autonomia e motricidade fina para comer sozinho e é totalmente dependente até para fazer a sua higiene pessoal. Ele é a estatística escondida, é a pessoa com deficiência intelectual severa, que a gente nunca vê retratado com autoestima na propaganda ou na postagem. E deixa eu te contar: muitas pessoas com Síndrome de Down são assim. E precisamos falar sobre isso. Sobre o perigo de incentivar os conceitos de superação, de retratar a pessoa com SD apenas como um “campeão” superador que nos inspira.  

Precisamos refletir,  incluir a todos e derrubar as barreiras do capacitismo estrutural.

Ah, e deixa eu te contar uma última coisa: eu amo meu filho, do jeito que ele é. Meu coração vibra de tanto amor! Nós somos felizes mesmo com todas as limitações que ele enfrenta.

Eu luto diariamente por Guto e pela pertença social que ele merece. Pelo respeito de deixarem ele ser quem é. Fora do normal e do padrão. Único.

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Daniela Rorato

Mãe do Guto, empreendedora social e gestora da Soluções Inclusivas (@sejainclusive ). Ativista em defesa dos direitos das pessoas com deficiência (PcDs), especializada em políticas públicas para PcDs, ex-assessora da Frente Parlamentar em Defesa das PcDs de Pernambuco. Foi Vice-Presidente fundadora da ONG AMAR, com prêmios como a Medalha do Mérito Heroínas do Tejucupapo e o Prêmio Tacaruna Mulher. Criou o projeto “mãelitante” para ajudar e unir mães de crianças com deficiência através da sororidade.

Publicações

Este post tem 5 comentários

  1. Olá, Natasha. Tudo bem? Muito obrigado pelo carinho. Vou transmitir sua mensagem para a autora do artigo, Dani Rorato.

  2. NATASHA NETTO

    Que texto lindo. Parabéns pela iniciativa de falar e mostrar a importância da inclusão de todos, não apenas dos que conseguem “pertencer’ ou se adequar a esta sociedade falida que pertencemos!

  3. Solange Russo

    Parabéns Daniela !!! Vc é Guto são guerreiros !!! Deus abençoe sempre essa nossa luta !!! Tb sou mãe de uma criança especial e luto pra que a sociedade não a discrimine !!! Obrigado por ser nossa voz !!!

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