Pessoas com Síndrome de Down conquistando seus espaços através de carinho e dedicação
Coluna Sem Barreiras apresenta Reportagem Especial de encerramento da Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla
Como toda pessoa com deficiência, o indivíduo com Síndrome de Down, usualmente, é visto com aquele rótulo de “coitadinho”. Existem diversas maneiras de desconstruir tal preconceito, mas o esporte é, inquestionavelmente, uma das ferramentas mais poderosas no sentido de promover uma melhor qualidade de vida e uma maior integração social a esse grupo.
A síndrome foi descoberta em 1866, por John Langdon Down, após a observação de crianças que apresentavam o mesmo grupo de características. Em 1958, o geneticista Jerôme Lejeune constatou que as crianças com essa síndrome possuíam 47 cromossomos e não 46, como na maioria dos seres humanos.
E assim, esse cromossomo a mais ligava-se ao par 21. Surgiu então um dos termos utilizados para se referir à síndrome: a trissomia do 21, que nada mais é do que a não separação primária, que ocorre em qualquer divisão meiótica. Na anáfase, etapa da divisão celular, os cromossomos são separados de forma correta. Sendo assim, um gameta receberá dois cromossomos 21 e o outro não receberá.
Conquistando títulos
Dentro dessa realidade, há cerca de 15 anos surgiu o Futsal Down ↗, a fim de garantir um equilíbrio maior quando se fala em competição, pois antes de sua criação, havia uma categoria geral para englobar as pessoas com deficiência intelectual. Essa generalização era prejudicial para aqueles atletas com Síndrome de Down, pois uma das marcas da trissomia do 21 é a dificuldade na coordenação motora.
A seleção brasileira só foi criada em 2011, mas em oposição ao que acontece em outros países, o Brasil não faz a parceria entre a seleção de Futsal Down e a CBF (Confederação Brasileira de Futsal). Em contrapartida, em 2019, o país sediou a edição da Copa do Mundo da modalidade e mesmo com vaga garantida por ser o anfitrião, disputou a Copa América. Além da ocasião, o Brasil foi sede da primeira competição internacional, que aconteceu no Guarujá, em 2013, envolvendo também as equipes do Chile e da Venezuela, que sagrou-se campeã.
Na cidade de Itu ↗, interior de São Paulo, encontra-se uma das equipes referência no esporte atualmente. Dirigida pelo técnico Carlos Alberto Santos, que desde 2006, trabalha na APAE de Itu, o Instituto Mozione – Ituano Futsal Down e DI acumula resultados expressivos, conquistados recentemente. Em sua criação, o time contava com uma comissão técnica reduzida, composta por Thiago Nacle (Presidente), Amábili Canola (Coordenadora Técnica), Edmundo Trevisan (Gestor Esportivo) e Rogério Gatti (Preparador Físico).
Mas o caminho nem sempre foi fácil. Em conversa com o Jornalista Inclusivo, Neco, como é conhecido por todos do meio esportivo, relata que no início existia muita dificuldade de encontrar pessoas interessadas em participar do projeto, que em um primeiro momento, tinha o cunho somente social e não competitivo. Contudo, no esporte, há um pouco de destino, aliado ao trabalho de profissionais dedicados. Dentre os quatro atletas que compunham a primeira formação do time, estava Renato Gregório, atual Melhor Jogador do Mundo de Futsal Down
Alegria que contagia e supera o preconceito
A genialidade e a persistência do garoto faziam com que o restante de seus companheiros também não abandonassem a caminhada. Com o tempo, todos foram se aperfeiçoando.
“Tive o cuidado de montar uma comissão técnica na qual todos tivessem especialização na área de Deficiência Intelectual, Física e Múltipla. Elaboramos planos de treinamento, apresentando conteúdo que carrega um pouco de ludicidade no começo e na sequência passamos para os circuitos, visando o alto rendimento”, afirma Carlos Alberto.
Ele ainda completa que os atletas com Síndrome de Down, na sua maioria, apresentam poucos tônus muscular. Assim, os circuitos são montados de forma cuidadosa para promover um ganho muscular, de resistência e explosão, mas sempre respeitando o limite físico de cada um.
Apesar de toda a magia, o esporte é uma esfera da sociedade e não está imune ao preconceito. Questionado sobre quais são as principais barreiras que o Futsal Down enfrenta hoje, Carlos elenca a discriminação, a falta de reconhecimento por parte dos órgãos responsáveis, ausência de incentivo do poder público e privado e o silenciamento do paradesporto pela grande mídia.
Ainda nesse contexto, Neco ressalta que a prática esportiva pode ser uma importante aliada da pessoa com Síndrome de Down na batalha contra quadros depressivos, comuns nesses indivíduos. De outra forma, o esporte pode fazer com que tal grupo se ausente de seu mundo particular e insira-se, de fato, socialmente.
O Melhor do Mundo
Contando um pouco sobre as histórias que envolvem a equipe, o treinador lembra o time que foi montado para a disputa do primeiro campeonato oficial, realizado em 2018 pela CBDI (Confederação Brasileira de Deficientes Intelectuais):
“Sabíamos das dificuldades que enfrentaríamos. Iríamos encontrar equipes de outros estados, com mais tempo de trabalho, como Santos Futebol Clube e o Sport Clube Corinthians Paulista, que na época tinha um histórico de dez anos de invencibilidade. Fizemos um campeonato irretocável. Tivemos um índice de 100% de aproveitamento, vencendo o Santos na semifinal por 11×2 e o Corinthians, na final, por 9×2″, recordou com alegria. E continuou:
“Foi nessa competição que revelamos para o mundo o atleta Renato Gregório, que na ocasião, foi artilheiro e melhor jogador do campeonato”
Um relato de amor
O propósito maior da coluna Sem Barreiras é o esporte. Entretanto, a prática esportiva não carregaria valor algum se não contasse com as histórias das pessoas, que a complementa e a torna ímpar. Além disso, meu papel, enquanto jornalista é contar esses enredos e dar voz à personagens que realmente fazem a diferença. Nesse sentido, a segunda entrevistada nessa matéria é Gisele Pellegrini, bióloga de 37 anos e mãe de Lucas, de dois anos e cinco meses, que tem Síndrome de Down.
“Nós descobrimos a Síndrome de Down do Lucas somente após seu nascimento. Ele nasceu de parto natural e logo que veio para o meu colo, percebi que seus traços remetiam à trissomia do 21. A equipe médica da maternidade comprovou nossa suspeita no dia seguinte e informou que ele seria submetido a um exame de sangue, chamado cariótipos, que demoraria de 45 a 60 dias para sair o resultado”, relata Gisele.
Na sequência, a mãe ainda conta que ficou muito abalada com a notícia: “eu senti como se meu mundo tivesse desmoronado. Percebi que eu não conhecia nada sobre a síndrome e a cada leitura que eu buscava na internet ficava assustada, pois pensava que seria um fardo para mim o resto da minha vida, que o Lucas seria dependente e rejeitado e que teria muitos problemas de saúde. Quem nunca ouviu que são ‘anjos ou eternas crianças’”?
Antes do nascimento de Lucas, Gisele considerava-se uma pessoa descolada e pró-diversidade, mas afirma que quando a diversidade veio para dentro de casa, viu o quanto era capacitista.
“Durante a espera da confirmação, vivenciei a dor mais profunda, entrei em depressão pós parto e busquei o tratamento adequado. Essa dor foi necessária para o meu renascimento”
No processo de transformação, a mãe coloca que notou que, na verdade, a deficiência estava nela, em não acreditar no Lucas e no que ele poderia alcançar. “Hoje, enxerto a Síndrome de Down apenas como uma das características do Lucas. As dificuldades que ele apresenta são únicas dele, enquanto indivíduo. Cada pequeno avanço do meu filho significa tudo pra mim e confirma que eu tenho razão em acreditar nele”.
Gisele e Lucas são muito participativos nas causas que envolvem a pessoa com deficiência. Em uma parte de seu relato, ela reflete: “acredito que a nossa atitude em relação à Síndrome de Down é fundamental para que a sociedade tenha uma aceitação melhor. Assim como eu era no passado, desprovida de informação e conhecimento, buscamos desmistificar a Síndrome de Down e orientar quem convive conosco”. A partir desse posicionamento, Gisele teve a ideia de criar o @no.mundo.lucas ↗, um perfil no Instagram para conectar famílias e mostrar que as pessoas com Síndrome de Down podem sim ter uma vida plena
Caros leitores, depois de dois relatos de tirar o fôlego como esses, que apesar de parecerem, de certa forma, distantes, completam-se para ocupar um lugar de fala tão buscado e tão negado, nenhuma colocação que eu faça como conclusão irá contribuir mais do que vocês refletirem sobre tudo o que aqui foi dito, a fim de assimilar e compreender o tamanho dessas pessoas em nosso cotidiano.
Murilo Pereira
Cursando a faculdade de Jornalismo, Murilo Pereira dos Santos é Paratleta pela categoria BC1 de Bocha Paralímpica Ituana. Ele administra, nas redes sociais, as páginas "Vem Comigo" e "Sem Barreiras", este último oriundo do seu blog que dá nome a coluna aqui no site Jornalista Inclusivo, sobre paradesporto e outras questões.