O Direito de Amar e Ser Amado, as Barreiras Invisíveis do Capacitismo Afetivo e a Luta por Vínculos Genuínos.
Entre todos os direitos fundamentais, talvez nenhum seja tão profundamente humano quanto o direito ao amor. Amar e ser amado não é apenas desejo legítimo, mas expressão essencial da dignidade da pessoa. Para a pessoa com deficiência, porém, o caminho para viver plenamente a experiência do afeto ainda enfrenta barreiras invisíveis, oriundas de estigmas, preconceitos e, sobretudo, do capacitismo afetivo — a crença de que corpos e mentes fora do padrão seriam indignos do amor ou da sexualidade.
Este artigo pretende lançar luz sobre o direito ao amor das pessoas com deficiência, explorando dimensões jurídicas, sociais, familiares, emocionais e culturais. Trata-se de direito humano inalienável, pois, como afirma Flávia Piovesan, “os direitos das pessoas com deficiência têm natureza de direitos fundamentais, integrantes do núcleo essencial da dignidade humana e não podem ser considerados privilégios ou favores do Estado” (Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 2013, p. 203).
Direito de Amar e Dignidade Humana
O direito ao amor inscreve-se na dignidade humana não apenas como dimensão afetiva, mas como experiência existencial que afirma a pessoa como sujeito de direitos. Como destaca Flávia Biroli, “as relações afetivas são espaços de exercício de autonomia e de negociação de desigualdades”. Assim, privar alguém do afeto não é apenas ferir emoções, mas negar cidadania.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com força constitucional no Brasil, declara (art. 23) que as pessoas com deficiência têm direito a constituir família, casar-se, decidir sobre ter filhos e manter relações afetivas. Não se trata de luxo, mas de parte essencial do projeto de vida digna de qualquer ser humano.
Capacitismo Afetivo: A Violência Invisível
O capacitismo afetivo é uma das faces mais sutis e cruéis do preconceito. Ele se manifesta em frases como “essa pessoa não vai se casar” ou “ela não tem vida sexual”. Trata-se de uma lógica cultural que infantiliza, dessexualiza ou transforma corpos com deficiência em objetos de fetiche, nunca em parceiros legítimos de afeto ou desejo.
Biroli sublinha que “afeto e sexualidade são dimensões pelas quais se exercem desigualdades de poder.” No caso das pessoas com deficiência, essas desigualdades se agravam, gerando isolamento, solidão e ausência de redes de apoio emocional. Para mulheres com deficiência, o preconceito é ainda mais intenso, já que se soma o machismo estrutural à ideia capacitista de que seriam incapazes de exercer maternidade ou viver relacionamentos saudáveis.
Não se trata de algo trivial. O capacitismo afetivo produz danos concretos: baixa autoestima, depressão, retraimento social, vergonha, adoecimento mental. E, ao mesmo tempo, reforça a exclusão estrutural, pois nega à pessoa com deficiência o direito de sonhar, planejar e viver sua afetividade.
Autonomia, Corpo e Sexualidade: Amor Não Vê Deficiência
A sexualidade da pessoa com deficiência precisa ser compreendida sob a ótica da autonomia. É direito da pessoa com deficiência conhecer seu corpo, entender seus desejos, estabelecer vínculos e decidir livremente sobre relações afetivas e sexuais.
Contudo, há barreiras duplas: primeiro, o corpo é invisibilizado, como se fosse incapaz de sentir prazer ou de gerar desejo. Segundo, quando visível, é fetichizado ou tratado com piedade. Isso impacta não só a vida íntima, mas também o acesso a direitos fundamentais como saúde sexual e reprodutiva, políticas públicas de proteção à mulher, proteção contra violência doméstica e direito à formação familiar.
Para a doutrina, há um dever jurídico de proteção ao exercício livre da sexualidade. Leonardo Carneiro da Cunha observa que “a acessibilidade, para além de barreira física, é também barreira social e cultural, sendo dever do Estado remover obstáculos que impeçam o pleno exercício da cidadania pela pessoa com deficiência” (Direitos Fundamentais das Pessoas com Deficiência, 2021, p. 72). Isso inclui remover obstáculos ao direito ao amor e à vida sexual plena.
Aspecto Familiar e Social: Medos e Esperanças
O amor também é questão familiar. As famílias, muitas vezes, convivem com o medo de que seus filhos com deficiência sofram rejeições, abusos ou violências emocionais. Esse receio, ainda que compreensível, pode levar à superproteção e até à restrição da liberdade afetiva e sexual da pessoa com deficiência.
Por outro lado, existe também o lado luminoso: para muitas famílias, ver que o filho, filha ou parente com deficiência constrói amizades, vive romances e estabelece vínculos afetivos genuínos representa uma imensa alegria e alívio. É a confirmação de que não estarão sozinhos no mundo e que há pessoas capazes de enxergar além da deficiência.

Esse equilíbrio entre proteção e liberdade é complexo, mas absolutamente necessário. Afinal, ninguém pode ter a própria vida afetiva tutelada indefinidamente. O direito ao amor também significa o direito à autonomia e à escolha — ainda que isso inclua erros, frustrações e novos aprendizados.
Direito ao Amor e Interseccionalidade
O direito ao amor das pessoas com deficiência não pode ser analisado de forma isolada, como se fosse uma única camada de identidade. A interseccionalidade — conceito introduzido pela jurista Kimberlé Crenshaw — explica que múltiplas formas de discriminação podem se somar e produzir efeitos únicos na vida de uma pessoa.
No campo afetivo, isso significa que uma mulher com deficiência enfrenta barreiras diferentes de um homem com deficiência; que uma pessoa negra com deficiência pode sofrer tanto racismo quanto capacitismo, inclusive na esfera afetiva; que uma pessoa LGBTQIAPN+ com deficiência vivencia duplo estigma e invisibilidade.
Na prática, a sociedade costuma atribuir à pessoa com deficiência uma suposta assexualidade, mas também há hiperssexualização de corpos negros ou pessoas trans, criando expectativas contraditórias, opressivas e muitas vezes violentas. Essas pessoas sofrem, por exemplo, com maior risco de violência sexual, relações abusivas, isolamento social e dificuldade para exercer autonomia afetiva.
O direito ao amor, portanto, deve ser compreendido como direito humano fundamental, que demanda não apenas a eliminação de barreiras arquitetônicas ou comunicacionais, mas também o combate às barreiras sociais, raciais, econômicas, de gênero e orientação sexual. Não se trata apenas de permitir que pessoas com deficiência amem, mas garantir que possam amar com liberdade, segurança e dignidade, em todas as suas múltiplas identidades.
Direito ao Afeto: Internet e Redes Sociais
O avanço tecnológico trouxe novas possibilidades e novos riscos para o direito ao amor das pessoas com deficiência. A internet e as redes sociais se tornaram ferramentas importantes de socialização, encontro e formação de vínculos afetivos — sobretudo para quem enfrenta barreiras físicas ou sociais que limitam a interação presencial.
Porém, é nesse ambiente que surgem também desafios gravíssimos. Pessoas com deficiência se tornam alvos fáceis de fetichização, golpes emocionais, fraudes financeiras e exposição sexual não consentida. Muitas vezes, a baixa autoestima provocada pelo capacitismo faz com que pessoas com deficiência aceitem relações abusivas ou mantenham contatos tóxicos por medo da solidão.
A doutrina moderna, como Flávia Piovesan, destaca que o direito ao afeto inclui proteção contra qualquer forma de violência ou manipulação emocional, inclusive no espaço virtual. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) estabelece direitos fundamentais de privacidade e segurança, mas há pouca eficácia prática na proteção específica das pessoas com deficiência nesse contexto.
Assim, é crucial haver educação digital acessível, canais especializados para denúncia de crimes virtuais, e apoio psicológico para vítimas. As plataformas digitais também têm responsabilidade em combater práticas capacitistas e conteúdos discriminatórios. O direito ao amor online é tão legítimo quanto o presencial e deve ocorrer com segurança, respeito e liberdade.
Autonomia Apoiada no Campo Afetivo
Uma dimensão pouco explorada do direito ao amor é a relação entre afetividade e autonomia apoiada. A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) trouxe avanço ao reconhecer que a pessoa com deficiência tem plena capacidade civil, podendo decidir sobre sua vida, inclusive na esfera afetiva e sexual.

No entanto, na prática, ainda é muito comum que familiares ou cuidadores controlem a vida afetiva de pessoas com deficiência, sob o argumento de protegê-las. Proíbem namoros, escolhem parceiros, censuram amizades ou dificultam o acesso a informações sobre sexualidade e direitos reprodutivos. Essa tutela excessiva fere direitos fundamentais como liberdade, intimidade e autodeterminação.
A doutrina destaca que o instituto da autonomia apoiada, previsto no artigo 84 da LBI, deve também se aplicar à esfera afetiva. Ou seja, se a pessoa precisar de apoio para compreender riscos ou tomar decisões sobre relacionamentos, esse apoio deve existir — mas sem substituição de vontade, sem imposição de escolhas ou bloqueios arbitrários.
Amar é um ato de liberdade. Restringir o direito ao amor de alguém com deficiência é negar-lhe a condição plena de sujeito de direitos. A autonomia apoiada no campo afetivo é um desafio delicado, mas fundamental para assegurar que a pessoa com deficiência viva relações saudáveis, consensuais e felizes.
Educação e Formação para o Amor
Uma questão fundamental é a educação sexual e afetiva da pessoa com deficiência. Muitos nunca receberam informação adequada sobre seus corpos, seus direitos ou sobre relações saudáveis. O silêncio imposto pela família, pela escola ou pela sociedade cria brechas para abuso, exploração ou adoecimento emocional.
É papel do Estado e das instituições educacionais garantir programas inclusivos de educação sexual, que contemplem pessoas com deficiência como sujeitos de direitos, capazes de amar, desejar e estabelecer vínculos afetivos. Informação é poder — inclusive para dizer “sim” ou “não” a relações que não se desejam.
Direito Antidiscriminatório e Relações Afetivas
O direito brasileiro já avançou muito na proteção antidiscriminatória. Contudo, há lacunas importantes quando se trata da vida afetiva das pessoas com deficiência. Não há normas específicas sobre acesso a serviços de apoio a casais com deficiência, políticas públicas para garantir vida íntima segura ou instrumentos para proteger relações conjugais contra violências capacitistas.
É preciso que as leis brasileiras reconheçam que o amor não é privilégio, mas direito humano. E que as pessoas com deficiência têm o direito de participar dos mesmos projetos de felicidade que qualquer outra pessoa.
Representação Cultural: Amor e Imaginário Social
A mídia, a literatura, o cinema e as redes sociais desempenham papel decisivo na maneira como a sociedade enxerga o amor da pessoa com deficiência. Em geral, ou são invisíveis ou aparecem de forma estereotipada: como “anjos” assexuados, “super-heróis” que superam limitações ou objetos de pena.
Precisamos de narrativas mais realistas e diversas. Mostrar pessoas com deficiência como protagonistas de suas histórias de amor, com desejos, alegrias, ciúmes, sonhos, é uma forma poderosa de derrubar preconceitos. Afinal, a luta por inclusão não é apenas legal, mas também cultural.