Jornada de Andréa Mazacotte, da educação oralista que a via como “cobaia” à pesquisadora que hoje redefine a educação bilíngue, espelha a luta da comunidade surda no Brasil.
Foz do Iguaçu/PR, 20 de outubro de 2025 – Ao defender sua tese de doutorado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), a professora Andréa Carolina Bernal Mazacotte não apenas se tornou a primeira pessoa surda a alcançar tal feito na instituição; ela coroou uma trajetória que simboliza a luta de uma geração.
Da infância em um sistema oralista que a silenciava, passando pela graduação onde o “papel se tornou seu intérprete”, até se tornar uma pesquisadora que hoje questiona os fundamentos da “inclusão ” no Brasil, sua história expõe as falhas de um sistema e a força de quem ousa transformá-lo.
Um País com 1,4 Milhão de Vozes: O Contexto da Surdez no Brasil
A conquista de Andréa Mazacotte, como primeira doutora surda da Unioeste, dialoga com uma realidade nacional massiva. Segundo dados do Censo Demográfico de 2022 do IBGE , o Brasil tem aproximadamente 1,4 milhão de pessoas com surdez severa ou profunda (1,2 milhão com “grande dificuldade” para ouvir e 239,5 mil que “não conseguem de modo algum”).
Para essa população, com surdez profunda, o acesso a uma educação que respeite sua língua e cultura é um direito fundamental, mas cuja efetivação, como mostra a jornada da professora, é fruto de uma batalha contínua.
A “Aluna-Robô”: A Angústia da Educação Oralista nos Anos 80
Nascida em 1979, Andréa foi educada sob o método oralista, uma abordagem que proibia o uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e focava exclusivamente no treino da fala e da leitura labial. Em sua dissertação de mestrado, uma autobiografia detalhada, ela descreve a experiência como desumanizante:
“Sentia-me em curso mecânico, curso de papagaio […] estava cansada do curso de papagaio, cansada de ser robô e cansada de ser usada como cobaia”, relata. A descoberta de sua própria identidade veio apenas aos 16 anos, em um seminário. “Quando cheguei em casa, perguntei três vezes para minha mãe: ‘Mãe! Eu sou surda?’ Minha mãe me respondeu: Sim. Me parecia que estava ruindo minha vida.”
“Encontrei Meu Mundo”: A Virada com o Vestibular em Libras
A grande transformação em sua vida acadêmica e pessoal ocorreu em 2006, quando foi aprovada no primeiro vestibular do Brasil com prova em Libras, para o curso de Letras/Libras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Esta faculdade mudou muito minha vida, pois encontrei ‘meu mundo’, isto é, Comunidade Surda”, escreve. A experiência contrastava brutalmente com sua graduação anterior em Normal Superior, onde, sem intérpretes, ela precisou lutar na justiça pelo direito à acessibilidade e desenvolver estratégias de sobrevivência. Foi nesse período que nasceu uma de suas frases mais emblemáticas:
“Consegui acompanhar graças à minhas amigas e um amigo, que me ajudavam a traduzir a voz do professor no papel. O professor falava, colegas ouviam e anotavam, eu lia no papel […] O papel se tornou como meu intérprete.”
Andréa Mazacotte

A Pesquisadora que Nasceu da Luta: A Crítica ao “Português Sinalizado”
A tese de doutorado “Saberes de Docentes sobre a educação de Surdos em Contexto Multilíngue de Fronteira” não é apenas um trabalho acadêmico, mas a sistematização de uma vida de reflexão. A pesquisa de Andréa critica modelos de “inclusão” que, na prática, perpetuam a exclusão. Um de seus alvos é o chamado “português sinalizado”, uma prática comum em escolas inclusivas onde se utiliza a Libras apenas para imitar a estrutura gramatical da Língua Portuguesa, desrespeitando-a como uma língua com gramática e sintaxe próprias. Sua conclusão é um chamado à ação: a verdadeira educação bilíngue só ocorre quando a Libras é tratada como primeira língua (L1) e o português escrito como segunda (L2), em um ambiente que valoriza a cultura surda.
O Legado: Da Aluna sem Intérprete à Doutora que Forma Professores
Hoje, como professora de Libras na Unioeste desde 2010, Andréa Mazacotte vive o outro lado da história. Apoiada pelo Programa Institucional de Ações Relativas às Pessoas com Necessidades Especiais (PEE), ela conta com intérpretes profissionais para ministrar suas aulas, formando as novas gerações de professores. A aluna que um dia precisou transformar o caderno em intérprete agora ocupa a cátedra, garantindo que o futuro da educação seja, de fato, mais inclusivo e bilíngue.