Lado B do autismo: O espectro retratado com a moldura do capacitismo

Augusto, jovem adulto sentado na praia de Boa Viagem, no Recife, com camiseta azul e sorrindo. Ilustra o lado B do autismo e síndrome de down.
Augusto tem trissomia 21 e vive o lado B do autismo. Filho da autora do artigo, ele ama praia, igual a mãe. (Foto: Reprodução. Créditos: Acervo pessoal)

A difusão de um discurso que se diz anticapacitista, mas que segrega dentro do que já é excludente

Um novo movimento tem me convidado à reflexão: a propagação de um discurso que se diz “anticapacitista”, mas que no fundo só enaltece as habilidades funcionais e autonomia das pessoas com autismo.    

Nas redes sociais, conduzido por autistas ou seus familiares, perfis evidenciam frases como “Autismo não é doença” ou “Lugar de autista é onde ele quiser” e arrematam com um vídeo e música emocionantes, mostrando, por exemplo, um autista que passou em Medicina.

Moldura do capacitismo

O autismo tem sido retratado com uma moldura capacitista, que mimetiza o conceito de “normalidade” funcional e me pergunto sempre onde estão os autistas com sintomas mais graves nesse debate? Assim como o meu filho, de 26 anos, cerca de 40 a 70% das pessoas que têm TEA não são autônomas. Onde estaria o debate sobre inclusão e respeito à neurodiversidade?  

A autoestima de uns talvez seja a exclusão de outros. Nem todas as pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) são funcionais como a advogada ou o médico geniais e superdotados retratados nas séries de tevê. Nem os adultos com vida funcional que descobriram seus diagnósticos tardiamente e falam do autismo de uma forma rasa em vídeos do Tik Tok, contribuindo para uma cultura social que ignora historicamente as pessoas com deficiências intelectuais e neurodivergentes.

Vivendo o Lado B do Autismo

O autismo é um espectro gigantesco dividido em níveis 1, 2 ou 3 de suporte, numa escala crescente de agravantes, como dificuldades na comunicação, falta de habilidades sociais e comportamentos restritos. Além disso, pode estar associado a condições físicas, psiquiátricas e/ou cognitivas e muitas comorbidades como a epilepsia, os distúrbios do sono, gastrointestinais e alimentares, além de depressão, ansiedade e TOC ou TDAH.

Cada caso é singular e a pessoa é impactada por multifatores: classe social, meio ambiente, saúde física e mental, acesso a tratamento. Precisamos disseminar o lado B do autismo: um transtorno que em muitos casos é incapacitante, que vem acompanhado de comorbidades graves e que impacta toda uma família. Qualquer tentativa de despatologização do autismo é um boicote na luta por políticas públicas para as pessoas que mais precisam.

É urgente que a sociedade se capacite para acolher as pessoas com deficiência intelectual, e não assistir a uma exposição de “superadores”. 

Augusto, que vive o lado b do autismo com síndrome de down, brincando com a água do mar.
#DescriçãoDaImagem #PraGeralVer: Augusto está sentado dentro do mar, na parte rasa. Ele observa a água límpida do mar atentamente, com a sua mão esquerda mexendo na água. Na foto ele está de perfil e seu rosto está posicionado para baixo, para a água do mar. (Foto: Reprodução. Créditos: Acervo pessoal)

Discurso excludente

Além disso, o discurso do autista funcional é elitista, classista e excludente. Como ativista, sei das dificuldades que as famílias de baixa renda enfrentam para obter o diagnóstico e tratamento do TEA. Em alguns estados, uma consulta ao neurologista pelo SUS representa dois anos de espera na fila. Quase o mesmo tempo para obter um benefício, como o da Prestação Continuada (BPC).

Tratar autismo com plano de saúde já é difícil, imagine sem. É sabido da luta em torno da taxação do rol de planos de saúde e da “indústria de terapias” em torno do autismo, que torna as famílias cada vez mais dependentes e ávidas por novas possibilidades de evolução para seus filhos. Já para famílias de baixa renda, a rotina é uma constante negativa de direitos fundamentais. Por isso, é fundamental a criação de políticas públicas em prol dos autistas e suas famílias.

Identidade Inclusiva

“Dizer que o autismo não é doença não é uma atitude inclusiva!”

Existe um processo de romantização e negação sustentado pelo medo. Medo da crueldade que é o bullying, da exclusão, da dor que é viver em uma sociedade que valoriza só os funcionais. Quem sabe exista espaço nesse mundo para criaturas etéreas e por isso tem tanto “anjo azul” hoje em dia por aí? Mesmo não sendo mais o azul a cor do autismo pois meninas também têm autismo e enaltecer a cor azul pode até dificultar o diagnóstico de meninas.

Não existe identidade inclusiva em dizer que “autismo não é doença”. É uma segregação dentro do que sempre excluiu dolorosamente. Existem 13 milhões de pessoas com doenças raras no Brasil. Como se sente a mãe de uma criança com doença rara ou câncer? Ter uma doença deveria ser motivo para mais empatia e acolhimento. Disto trata a transformação social, de não afastar mais quem está doente e sobretudo os com sofrimento mental.   

Cada um é único. Exibir funcionalidades talvez seja a mais cruel armadilha do capacitismo. Todos merecem pertencer, ser acolhidos, respeitados e incluídos em sua neurodiversidade

Foto da mãe Daniela abraçada ao filho Augusto, que tem síndrome de down, ilustrando o artigo “Conscientização e luta contra o capacitismo estrutural”
Descrição da imagem #PraCegoVer: A foto em preto e branco mostra Daniela e Augusto abraçados. É uma imagem recente. Ele está de camiseta branca e com o rosto encostado no rosto da mãe, e está sorrindo. Daniela o envolve com um abraço, está de olhos fechados e sorrindo. Créditos: Acervo pessoal

***As opiniões expressas nos artigos são exclusivamente das pessoas autoras e não refletem necessariamente as opiniões deste veículo.


Picture of Daniela Rorato
Daniela Rorato

Mãe do Guto, empreendedora social e gestora da Soluções Inclusivas (@sejainclusive ). Ativista em defesa dos direitos das pessoas com deficiência (PcDs), especializada em políticas públicas para PcDs, ex-assessora da Frente Parlamentar em Defesa das PcDs de Pernambuco. Foi Vice-Presidente fundadora da ONG AMAR, com prêmios como a Medalha do Mérito Heroínas do Tejucupapo e o Prêmio Tacaruna Mulher. Criou o projeto “mãelitante” para ajudar e unir mães de crianças com deficiência através da sororidade.

Publicações

Este post tem 3 comentários

  1. Barbara Gael

    <3

    Ah, um PS… O médico e a advogada geninhos das séries não representam praticamente nenhum autista. São só romantizações. Quase não apresentam crises, sempre têm sucesso em suas ações e ideias, são bonitinhos, arrumadinhos, brilhantes. Ainda bem que estão surgindo outras séries, mais realistas, como a As we see it, com autistas de graus distintos, com crises, com problemas sérios de relacionamento etc.

  2. Oi, Bárbara Gael. Tudo bem?
    Agradecemos demais por sua participação por aqui.
    Temos certeza da importância de discutir a respeito.
    Atenciosamente,

  3. Bárbara Gael

    Ótimo texto, discussão muito necessária! Sou um dos autistas “funcionais”, com diagnóstico tardio e que falam por si nas redes. Mas sempre levanto essa discussão, porque isso ficou na minha cabeça desde que li um texto de uma mãe de autista severo da Inglaterra. Não posso querer falar por todos autistas. A minha realidade é MUITO diferente da realidade de um autista severo. Teremos sim várias características em comum, mas em intensidade e forma diferentes. (O que não significa que a minha vida tenha sido fácil. Bem longe disso.)

    Acho que a inclusão do Asperger no espectro acabou sendo ruim para todos. Para nós, antes era fácil nos “explicar” quando preciso. Se eu dizia ser asperger, a maioria das pessoas já mais ou menos entendia o que esperar ou não de mim. Hoje tenho de dizer “Sou autista grau 1 com intelecto preservado”. E ouvir de volta “Não, você não é autista! Quem te diagnosticou???” Já para as mães de autistas severos… é o que você diz. Ter de lidar com essa imagem de autistas como geninhos (que nem mesmo os aspergers todos são), com tudo de ruim que ela traz para quem tem de lidar com o autismo severo. Idealizações, falsas expectativas, receber menos ajuda do que seria preciso etc.

    Fico pensando que seria preciso diferenciar as duas pontas do TEA. Os ex-asperger e os severos. E aí informar, muito. Campanhas governamentais de informação. Aí sim as coisas ficariam um pouco mais claras para a população. Como está, com essa amplitude gigante do espectro, é confuso demais até para quem convive com o autismo, que dirá para quem não conhece.

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