Neurodiversidade e Justiça: garantindo direito ao tratamento para pessoas com autismo

Martelo de juiz ao lado de peças coloridas de quebra-cabeça, simbolizando a relação entre neurodiversidade e justiça. (Créditos: Depositphotos)

Legenda descritiva: Martelo de juiz ao lado de peças coloridas de quebra-cabeça, simbolizando a relação entre neurodiversidade e justiça. (Créditos: Depositphotos)

Quando o Direito Bate à Porta da Dor: A luta por terapias essenciais e o impacto da burocracia na vida de milhares de famílias.

 

Quando falamos de negativa de planos de saúde ao tratamento de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), não se trata apenas de um impasse jurídico: trata-se de uma colisão direta com o sofrimento humano. São milhares de famílias, já sobrecarregadas pelas rotinas de cuidado, que veem seus filhos ou entes queridos piorarem dia após dia por falta de terapias adequadas, enquanto enfrentam a angústia de recorrer ao Judiciário.

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A espera por liminares, a exposição pública em processos ou reportagens e o desgaste emocional corroem forças que já estão no limite. Muitas famílias se endividam para pagar sessões particulares ou dependem de redes de apoio, campanhas solidárias ou associações para tentar garantir aquilo que deveria ser básico: tratamento digno e contínuo. O drama é profundamente social e humano.


Neurodiversidade e Justiça: Muito Além do Diagnóstico

O conceito de neurodiversidade é fundamental para compreendermos esse debate. Ele parte da ideia de que diferenças neurológicas, como o autismo, não são necessariamente doenças a serem “curadas”, mas variações naturais do funcionamento humano. Essa visão amplia o debate do autismo além do campo estritamente médico, inserindo-o no universo dos direitos humanos, da inclusão social, da acessibilidade e da relação entre neurodiversidade e justiça.

A neurodiversidade reforça que pessoas autistas possuem capacidades, interesses e talentos únicos, e que lhes deve ser assegurado o direito a viver plenamente, com apoio adequado às suas necessidades específicas.

As Linhas do Direito: Constituição, Leis e Jurisprudência

O direito brasileiro oferece sólida proteção às pessoas com autismo. A Constituição Federal, em seus artigos 6º, 196 e 198, consagra a saúde como direito de todos e dever do Estado. A Lei nº 12.764/2012 (Lei Berenice Piana) instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, equiparando pessoas autistas às pessoas com deficiência para todos os efeitos legais.

Já a Lei nº 14.454/2022 alterou a Lei dos Planos de Saúde para permitir a cobertura de tratamentos mesmo fora do rol da ANS, quando comprovada sua necessidade pelo médico assistente. Entretanto, essa lei é questionada na ADI 7.265, em julgamento pendente no Supremo Tribunal Federal (STF), pois entidades do setor de saúde suplementar alegam risco de desequilíbrio econômico.

A jurisprudência, no entanto, tem sido firme em garantir o acesso às terapias. No Recurso Especial (REsp) 2.043.003 (acesse o Relatório em PDF) , a Terceira Turma do STJ assegurou a cobertura ampla do tratamento multidisciplinar para pessoa com TEA, incluindo musicoterapia, e reconheceu o direito ao reembolso integral das despesas feitas fora da rede credenciada. O tribunal entendeu que excluir técnicas importantes do tratamento pode violar a dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à saúde.

Ainda, a Resolução Normativa 541/2022 da ANS reforçou a obrigatoriedade de cobertura de terapias como ABA, fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional e fisioterapia para pessoas com TEA.

Lenio Streck adverte que direitos fundamentais, como o acesso à saúde, não podem ser submetidos a formalismos contratuais que esvaziem seu conteúdo. Práticas administrativas que limitem o tratamento prescrito para pessoas autistas afrontam a natureza constitucional desses direitos.

Direito ao Tratamento: O Papel do Médico Assistente

Não cabe ao plano de saúde substituir a análise técnica do profissional médico. A escolha do tratamento — inclusive o tipo, frequência e intensidade das terapias — deve ficar restrita à avaliação do médico assistente. Quando a operadora impõe limites que conflitam com a prescrição médica, há violação do direito fundamental à saúde e risco de agravar o quadro do paciente. É justamente essa tensão que tem levado famílias ao Judiciário, para garantir que o profissional de saúde tenha a palavra final.

ESG, Responsabilidade Social e Imagem Corporativa

Pessoa usando cordão verde com desenhos de girassóis, símbolo internacional de deficiências ocultas.
Descrição da imagem: Foto mostra o tronco de uma pessoa vestindo camiseta branca, com um cordão verde pendurado no pescoço. O cordão é estampado com pequenos girassóis amarelos e possui um gancho metálico na ponta. Esse cordão é amplamente reconhecido como símbolo de deficiências ocultas, como autismo, epilepsia, ansiedade ou doenças crônicas invisíveis, ajudando a promover compreensão e apoio em ambientes públicos. (Créditos: Depositphotos)

A negativa de cobertura também afeta a imagem pública das operadoras. Em tempos de ESG (Environmental, Social and Governance), empresas são cada vez mais cobradas por práticas socialmente responsáveis. Negar tratamentos essenciais não só pode gerar processos judiciais milionários, como também danificar reputações. Em setores tão sensíveis como a saúde, ESG não é apenas discurso bonito — é uma questão de sobrevivência corporativa.

Panorama Internacional: Olhares de Fora Podem Inspirar

Comparar com o mundo pode lançar luz sobre caminhos possíveis no Brasil. Na Espanha, por exemplo, a Ley General de Derechos de las Personas con Discapacidad assegura terapias de forma contínua e sem limites rígidos, impondo ao sistema de saúde a obrigação de prover cuidados especializados. Na Itália, há dispositivos legais que garantem cobertura integral de terapias baseadas em evidências para pessoas autistas, consideradas parte do direito à saúde pública.

Nos Estados Unidos, embora o sistema seja predominantemente privado, diversos estados possuem leis específicas determinando a cobertura de terapias como ABA nos planos de saúde. Em estados como Massachusetts e Califórnia, existe inclusive teto mínimo de sessões anuais garantidas por lei.

Essas realidades mostram que há espaço para o Brasil evoluir, seja na legislação, seja nos contratos de planos de saúde, para assegurar atendimento digno às pessoas com TEA.

Campanhas, Associações e o Papel do Poder Público

Diversas entidades desempenham papel fundamental nesse cenário. Organizações como a Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (ABRAÇA), o Movimento Orgulho Autista Brasil (MOAB) e o Instituto Priorit são exemplos de instituições que oferecem orientação jurídica, psicológica e suporte emocional às famílias. Também são fontes importantes de informação sobre direitos e de mobilização social para pressionar por mudanças legais e regulatórias.

O Poder Público e órgãos de controle, como o Ministério Público e as Defensorias Públicas, têm igualmente papel crucial. Muitos promovem mutirões jurídicos, ajuízam ações civis públicas contra planos de saúde ou prestam atendimento gratuito às famílias. O controle social e a fiscalização governamental são instrumentos indispensáveis para proteger os direitos das pessoas autistas diante de práticas abusivas de operadoras.

Doutrina e Direitos Humanos: Um Chamado à Consciência

Na doutrina nacional, Maria Helena Diniz recorda que o direito à saúde é expressão do princípio da dignidade da pessoa humana. Norberto Bobbio, em sua clássica obra sobre direitos fundamentais, adverte que “os direitos do homem nascem da necessidade de proteger a pessoa contra qualquer poder que tenda a violar sua integridade física ou moral.”

O autismo, dentro da perspectiva dos Direitos Humanos, demanda muito mais que garantias jurídicas: exige o compromisso ético da sociedade. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU , incorporada ao Brasil pelo Decreto nº 6.949/2009, assegura o direito ao mais alto padrão de saúde sem discriminação. Negar tratamento à pessoa com TEA fere frontalmente essa garantia internacional. Conforme destaca Ingo Sarlet, a dignidade humana não se limita ao campo físico, mas alcança também a esfera psíquica e social. Negar tratamento adequado à pessoa autista implica violação não apenas ao direito à saúde, mas à própria essência da dignidade humana. Essa é a mesma linha de pensamento do professor Clèmerson Clève ensinando que não existem direitos fundamentais sem eficácia. Aplicando isso ao autismo, qualquer restrição de acesso a terapias viola o mínimo existencial que integra a dignidade humana

Um Convite à Reflexão

O tema das negativas dos planos de saúde ao tratamento do autismo está longe de ser apenas uma questão técnica. Ele desnuda a fragilidade de famílias que, além de cuidar de seus filhos ou parentes com TEA, precisam se tornar ativistas, advogados e contadores de histórias para sensibilizar juízes e a sociedade.

Enquanto esperamos o julgamento do STF na ADI 7.265, cada negativa continua a ter rosto, nome e dor. E cada vitória na Justiça revela que saúde não é mercadoria: é um direito que não pode esperar.

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Igor Lima

Igor Lima da Cruz Gomes é advogado, colunista do site Jornalista Inclusivo, pós-graduado em Direitos Humanos e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência. É autor da coletânea “Deficiência e os Desafios para uma Sociedade Inclusiva”, obra citada no STF, na Unesp e em instituições como Harvard e Coimbra. Siga no Instagram @igorlima1898.

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