Lidando com Perdas, por Rafaela Costa

Mãe chora na UTI neonatal - Lidando com Perdas, por Rafaela Costa

Descrição da imagem #PraCegoVer: Foto ilustrativa do texto Lidando com Perdas, por Rafaela Costa. Mulher de pele branca e cabelos loiros presos está de olhos fechado e cabisbaixa, em frente a um bebê, na UTI neonatal. Ela está com a cabeça apoiada em uma das mãos, e outra sobre o recém-nascido. Usa pulseiras de identificação hospitalar. Foto: AdobeStock

Quando o luto acontece na chegada e a mulher passa a sofrer na solidão

Psicóloga e Doula Acessível em Libras aborda tema delicado da vida de casais que se separam, ou se fortalecem e surpreendem a si mesmos: a perda perinatal

Por definição a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2016), o óbito fetal é “a morte de um produto da concepção, antes da expulsão ou da extração completa do corpo materno, independentemente da duração da gravidez”. E segundo a definição do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011, p. 7) óbito fetal é descrito como “óbito intraútero, ocorrido a partir da 22ª semana completa de gestação, ou com peso igual ou superior a 500g até o momento do parto”.

Aguiar (2016), em sua dissertação de mestrado com o título “Quando a morte antecede a chegada: Singularidades do óbito fetal”, afirma que procurar definir quando a vida começa é uma das questões mais espinhosas da atualidade e não deve ser simplificada. Diversos dilemas surgem ao redor desse tema, desde questões éticas e até religiosas.

Segundo Montero (2011), a perda perinatal é experiência indescritível para a mãe, o pai e os familiares, difícil de assimilar, considerando que os bebês representam o início da vida e não o fim. Após sofrer uma perda, tem início uma série de tarefas, chamada processo de elaboração do luto. O luto é a resposta normal e saudável a uma perda.

“O luto é a resposta normal e saudável a uma perda”

Os pais vivenciam as mesmas reações que aquelas observadas em outras situações de luto, tais como sentimentos de vazio interior, culpabilidade, irritabilidade, pesar esmagador, temor de uma nova gravidez, raiva, incredulidade e apatia.

Aproximadamente, 20% das mães sofrem de algum transtorno psicológico, como depressão ou ansiedade dentro de um ano após a perda, e podem desenvolver distúrbios psiquiátricos com capacidade para influenciar eventuais gravidezes posteriores e o relacionamento com o bebê seguinte.

Exame de ultrassom - Lidando com Perdas, por Rafaela Costa

Descrição da imagem #PraCegoVer: Imagem mostra a barriga de uma mulher branca durante exame de ultrassom. A pessoa que examina e segura o aparelho tem pele clara. Foto: Freepik Premium

Lidando com Perdas: Invertendo a lógica

Aguiar (2016) explica que a perda perinatal acontece em um momento bastante delicado e pode, até mesmo ser vivido de forma traumática pela mãe, uma vez que o objeto de amor perdido não está firmemente reconhecido como objeto da realidade. Assim, acreditamos que uma vida saudável e completa é representada por nascer, envelhecer e morrer. Contudo, por vezes essa lógica se inverte. Bebês ainda no útero materno podem sofrer uma interrupção dos impulsos de vida, lançando mãe, pai e familiares na incompreensão.

No momento em que os pais se preparavam para dar a vida, a criança que é esperada e sonhada desaparece, antes mesmo de conhecer o mundo, de conhecer os pais. Assim, os pais perdem não apenas um ser amado, mas, sobretudo, o que potencialmente o filho poderia ter lhes dado, se tivesse vivido. (AGUIAR, 2016, p. 31).

Aguiar (2016, p. 32) ainda mostra a falta de compreensão e sensibilidade que a sociedade mostra em relação a esse tipo de perda. “Quando um bebê morre antes de vir ao mundo é como se não tivesse tido um acontecimento para a sociedade – ‘a criança não nasceu, portanto, ela não existe’”. Nesse contexto, a perda perinatal tende a ser desconsiderada e a mulher passa a sofrer em solidão e silêncio.

Descrição da imagem #PraCegoVer: Fotografia do pé direito de um bebê de pele clara, sobre uma superfície branca. Foto: Designed by jcomp / Freepik

Lidando com perdas: Aceitação vs. Negação do Luto

O impacto desse acontecimento pode deixar graves sequelas na vida da mãe, do pai e dos familiares. Soubieux (2008) mostra que alguns casais se separam após a morte do bebê, outros permanecem juntos só até conseguirem ter outro bebê e então separam-se, e ainda há casais que se fortalecem e surpreendem a si mesmos com a capacidade de criar uma nova relação entre eles. 

“Há casais que se fortalecem e surpreendem a si mesmos com a capacidade de criar uma nova relação entre eles.”

Para a autora, o futuro do casal, e especialmente o futuro da saúde emocional da mãe, vai depender da compreensão e tolerância que recebam, visto que, a dor quando pode ser compartilhada, ajuda a mãe, pai e familiares a se reencontrar, a entender melhor as formas de viver e de superar esse drama.

Freud (1974) em seu texto “luto e melancolia”, descreve o processo de luto como o trabalho subsequente à perda de um objeto de amor, como uma das reações possíveis diante da perda de um objeto querido. Assim, o trabalho bem sucedido de elaboração do luto começa através do teste da realidade, isto é, a constatação de que houve a perda, saindo, desta forma, do estado de negação.

Diante disso, Pinheiro, Quintella e Verztman (2010, p. 7) explicam que o luto tem por função “matar o morto, dando a ele um lugar simbólico subjacente à elaboração, também simbólica, da perda”. Assim, quando o luto é possível, a mãe poderá preservar algo do objeto perdido através de uma identificação feita por traços.

A mãe, pais e familiares que passaram por processo de perda perinatal precisarão de uma boa rede de acolhimento e de bastante criatividade para conseguir ressignificar esse momento penoso. Em relação ao primeiro a importância do apoio da doula e de acompanhamento psicológico, são essenciais. Sobre a criatividade, Winnicott (1975, p.95) afirma que é a base para um viver saudável, que é inclusive ela que faz com que a vida valha a pena ser vivida, trazendo um “colorido de toda a atitude com relação à realidade externa”.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, H. C. Quando a partida antecede a chegada: singularidades do óbito fetal. 89 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Manual de vigilância do óbito infantil e fetal e do comitê de prevenção do Óbito infantil e fetal. 2 ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_obito_infantil_fetal_2ed.pdf >. Acesso em: 10 mar. 2020.

FREUD, S. Luto e melancolia. In: FREUD, S. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 271-291. (Trabalho original escrito em 1915 e publicado em 1917).

MONTERO, S. M. P.; SÁNCHEZ, J. M. R.; MONTORO, C. H.; CRESPO, M. L.; JAÉN, A. G. V.; TIRADO, M. B. R. A experiência da perda perinatal a partir da perspectiva dos profissionais de saúde. Revista Latino-americana de Enfermagem, v. 19, n. 6, p. 1-8, 2011.

PINHEIRO, T.; QUINTELLA, R.; VERZTMAN, J. Distinção teórico-clínica entre depressão, luto e melancolia. Psicologia clínica, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, 2010.

SOURBIEUX, M-J. Le berceau vide. Éres: Toulouse, 2008.

WINNICOTT, D. A criatividade e suas origens. In: WINNICOTT, D. Textos selecionados da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: F. Alves, 1978, p. 491-498. (Trabalho original publicado em 1956).

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Rafaela Costa

Psicóloga Acessível em LIBRAS, em Recife (PE), Rafaela é Tradutora Intérprete de LIBRAS na Secretaria de Educação do Estado de PE. É formada em Psicologia, Especialista em Rede de Atenção Psicossocial, Autismo e Deficiência Visual, formada em Surdocegueira, e Tiflologia. Com Especialização em Educação Inclusiva, e Certificação em Proficiência em LIBRAS e Pedagogia, comanda a coluna "Recortes da Psicologia Inclusiva".

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