Um quebra-cabeças de experiências em meio a uma rotina de amor
Em seu novo artigo na coluna Sem Barreiras, o jornalista Murilo Pereira torna público relatos de uma mãe e um pai de pessoas com deficiência, que abrem seus corações em “Suas mãos me guiam”
Aqui no Jornalista Inclusivo, buscamos ampliar o lugar de fala da pessoa com deficiência. Contudo, raramente pensa-se nos seus familiares, que estão os auxiliando no dia a dia e que carregam emoções, muitas vezes sufocadas por serem a voz desse cidadão, ao invés de exalar sua própria essência.
Pensando nisso, a coluna Sem Barreiras conta com dois personagens que espelham, de maneira exemplar tal cotidiano de muito esforço, dedicação e uma dose generosa de amor. A primeira é Eliane Topa, de 34 anos, mãe de Vítor e Vinicius. Por força do destino, essa mãe tem de dedicar-se em tempo integral aos gêmeos, uma vez que necessitam de muitos cuidados, impedindo-a assim de trabalhar fora de casa.
A saga vivida por Eliane é a mesma de muitas mães e pais que se dedicam incessantemente a fim de oferecer uma qualidade de vida mais digna para seus filhos e suas filhas. Nesse mesmo contexto, está João Castelo, autônomo de 54 anos e pai de Marielle, uma encantadora menina de 22 anos.
“Marielle nasceu prematura, com sete meses. Precisou ficar na incubadora por 21 dias e quando estava de oito para nove meses, adquiriu uma meningite bacteriana, precisando ficar internada por 30 dias. O primeiro sentimento foi de responsabilidade, aceitação e coragem para enfrentar os desafios. Sou capaz de fazer algo para ajudar, pois estamos juntos nessa batalha. Deus me escolheu”, afirmou o pai quando questionado sobre o turbilhão de sensações que cercaram os momentos iniciais.
Mesmo que as trajetórias sejam semelhantes, os pontapés de partida podem ser completamente diferentes. Para Eliane, quando os meninos receberam o diagnóstico de Paralisia Cerebral ↗ Tetraparesia Grau Cinco, aos oito meses de vida, não foi fácil. De fato, foi um susto, uma vez que a mãe tinha apenas 20 anos. Então, sentiu uma enorme revolta e, por diversas vezes, questionou a fé. Muitas águas precisaram passar para que o medo fosse aniquilado e a aceitação reinasse.
Particularmente, já me peguei tentando traçar quais seriam os principais medos dos meus pais com relação à minha vida, os perigos aos quais estou suscetível e ao meu futuro. É verdade que existem pessoas mais e menos fechadas no que toca a parte sentimental. Porém, independentemente do desejo de compartilhar ou não tais angústias, acredito que essas pessoas guardam, mesmo que uma pequena parcela de suas inseguranças, para assim serem nosso porto seguro.
“Até hoje é muito difícil, pois não existe acessibilidade nos lugares públicos. Meus filhos não tiveram a oportunidade de frequentar uma escola ou um parque, porque só existem trocadores de fralda para bebês, então, não consigo higienizá-los. Em qualquer lugar é assim”, contou a mulher de 34 anos.
Na vida de João, as questões que mexem com o seu psicológico são semelhantes. Para ele, a distancia que atualmente estamos da inclusão social plena é um ponto que trava inúmeras conquistas da pessoa com deficiência. “Para você ter algo que é seu por direito, você tem que lutar para provar e conseguir. Meu maior medo é de faltar de alguma forma, sabendo que tenho alguém que é dependente de mim. Sou ser humano e possuo falhas.”
A aceitação, que foi um aspecto já citado pelos nossos entrevistados, reflete uma etapa fundamental do processo. Contanto, ela só chega depois das pessoas entenderem que a vida familiar, como um todo, irá mudar radicalmente e de forma inevitável. “É difícil você se privar de algo que gosta, mas é preciso pensar e tomar decisões em família”, apontou o pai. No mesmo debate, Eliane colocou que uma grande mudança foi ter que morar com os pais novamente, pelo cuidado com os filhos. “Foi bem puxado até os sete anos. É complicado ter uma casa que parece um consultório, mais um hospital que uma casa, mas agradeço a todos os profissionais que me dão todo o suporte necessário.”
No contexto que envolve as pessoas com deficiência, ilusória e pateticamente somos vistos como sinônimos de super-heróis, que nunca falham ou sentem fraqueza. E não é desse jeito de modo algum. A realidade é que somos humanos, tanto pessoas com deficiência quanto cuidadores. Assumir nossas inconsistências, ao contrário do que aparenta, traz mais força e motivação para seguir. “Em momentos difíceis, o que mantém meu equilíbrio é Deus e depois a força que meus filhos me transmitem todos os dias, mesmo em situações de dor, como nas cirurgias”, refletiu com emoção a mãe dos gêmeos.
Enquanto indivíduo, creio que somos formados por memórias. Certas situações, embora instantaneamente pareçam ser insignificantes, futuramente serão a energia necessária para continuar quando o cansaço e a desconfiança atingirem o protagonismo. “Logo após a meningite e a saída do hospital, nós levamos a Marielle para passar com um Neurologista no posto de saúde, pois ela ainda não tinha convênio. Ele, olhando em meus olhos, disse como se fosse hoje: “Tudo que for possível, tudo que estiver ao seu alcance, faça. Melhorem a rotina de vida da Marielle”, lembrou o autônomo.
Talvez, você enxergue uma porcentagem de fantasia no próximo relato que trarei. Todavia, quando o cidadão tem a mesma vivência, ele se vê e se sente, de alguma forma, passando por aquilo, como uma espécie de afinidade ou solidariedade. “Um dia, sentei na porta de uma igreja para esperar o horário de uma consulta. Passou uma moça e me deu uma esmola pelo simples fato de estar na frente de uma igreja com duas cadeiras de rodas. Isso me motivou a falar mais sobre a questão de ter filhos com deficiência e ser grata”, dividiu Topa.
Recentemente, um sentimento ganhou destaque nesse dia a dia complexo no qual estamos cada vez mais inseridos: a ansiedade. Ela nos tira a nitidez das situações e a racionalidade dos pensamentos. Também nos apresenta caminhos mais curtos e, por essa razão, faz-se tentadora. Entretanto, tais rotas nos levam ao antagonismo dos nossos objetivos. “Quem não tem dúvidas, não é? Sempre reflito sobre até quando vou conseguir fazer minha parte ou se teremos mais oportunidades e direitos no futuro. Talvez, melhores condições e valorização dos profissionais”, explicou João. O tempo é ferramenta importante, mas ao mesmo tempo incisivo. Por isso, várias mães e pais, acredito eu, carreguem essa angústia com relação ao futuro, pois enxergam que, para determinados cuidados, somente a presença deles é capaz de suprir as limitações de seus filhos(as).
As dúvidas que Eliane traz consigo e que citou durante a entrevista são, de maneira geral, pontos que nos fazem questionar diversos aspectos responsáveis por fazerem funcionar a engrenagem da cidadania. “Até quando vamos ter que pagar caro para poder oferecer uma cadeira de rodas digna para nossos filhos(as)? Até quando nós, mães e pais, vamos ter que nos passar por loucas(os) para fazer valer os direitos?”
Enquanto autor deste artigo, não poderia me dar ao luxo de elaborar alguma conclusão, sem o olhar da vivência. Afinal, fui um mero mediador para que essas vozes tivessem espaço e pudessem contribuir para uma melhora em cotidianos semelhantes. “Não tenham medo, vergonha ou liguem para o que os outros irão dizer. Eu não imaginava que teria que dar banho, limpar ou trocar absorventes. Deus me capacitou e me tornei um ser humano melhor”, concluiu o pai de Marielle. Desse modo, encerro essa edição da coluna Sem Barreiras com a fala da mãe de Vítor e Vinicius: “A aceitação é o melhor caminho. Só ela fará você ir longe por seu filho(a). Lute, mas permita-se chorar ou sentir fraqueza. Não somos heróis ou heroínas. Apenas somos mães e pais”.
O Jornalista Murilo Pereira dos Santos é Paratleta pela categoria BC1 de Bocha Paralímpica Ituana. Ele é editor do "Prosa de Gol" (@prosadegol), nas redes sociais, e da página "Sem Barreiras" (@_sem_barreiras), esta última oriunda do seu blog, que também dá nome a sua coluna aqui no site Jornalista Inclusivo, sobre paradesporto e outras questões relacionadas a paralisia cerebral, acessibilidade e inclusão.