Mobilidade urbana e acessibilidade: o direito de ir e vir das pessoas com deficiência em debate

Homem idoso com muletas embarcando em um ônibus azul de número 10134, enquanto outras pessoas aguardam na calçada. Cena retrata mobilidade urbana.(Foto: Depositphotos)

Legenda descritiva: Homem idoso com muletas embarcando em um ônibus azul de número 10134, enquanto outras pessoas aguardam na calçada. Cena retrata mobilidade urbana.(Foto: Depositphotos)

A violação do direito à cidade e a responsabilidade coletiva na construção de um Brasil acessível.

 

A acessibilidade urbana está diretamente relacionada à garantia do direito de ir e vir, um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Para as pessoas com deficiência, no entanto, esse direito é frequentemente violado pelas barreiras físicas, atitudinais e institucionais que ainda marcam a realidade brasileira. Em um país com mais de 14,4 milhões de pessoas com deficiência, segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) , torna-se urgente um debate aprofundado sobre como as estruturas urbanas e os sistemas de transporte público contribuem – ou dificultam – para a inclusão efetiva dessas pessoas.

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Este artigo propõe uma reflexão crítica, jurídica e social sobre os impactos da mobilidade urbana inacessível na vida das pessoas com deficiência, abordando também as obrigações legais e éticas do poder público e da iniciativa privada.


A exclusão que começa nas calçadas e se agrava nos ônibus

A mobilidade urbana é, muitas vezes, o primeiro obstáculo que uma pessoa com deficiência enfrenta diariamente. Calçadas esburacadas, ausência de rampas, transporte público sem adaptação adequada, sem elevadores ou com motoristas despreparados – todos esses elementos contribuem para limitar o acesso a direitos básicos como educação, saúde, trabalho e lazer. Não se trata apenas de um problema de engenharia ou urbanismo, mas de uma violação cotidiana de direitos fundamentais.

O cenário torna-se ainda mais complexo para famílias com crianças com deficiência ou pessoas idosas com mobilidade reduzida. O simples deslocamento até uma escola, unidade de saúde ou local de trabalho pode se transformar em uma jornada marcada por medo, esforço excessivo, indignidade e insegurança.

A luta das famílias invisíveis

Por trás de cada pessoa com deficiência há, quase sempre, uma família que compartilha os desafios da exclusão. A falta de transporte acessível e seguro leva muitas famílias a modificarem suas rotinas, mudarem de endereço, abandonarem empregos ou até recorrerem ao transporte particular, ainda que isso gere endividamento. A ausência de acessibilidade urbana limita a autonomia da pessoa com deficiência e impõe sofrimento emocional e físico a quem está ao seu redor.

Trata-se de uma violência estrutural, que compromete não só o cotidiano, mas o futuro de milhões de brasileiros. O direito de circular com liberdade e segurança nas cidades precisa ser garantido de forma equitativa – não apenas para aqueles que andam em duas pernas, mas para todos os corpos e modos de locomoção.

Mobilidade urbana e neurodiversidade: um debate necessário

A discussão sobre mobilidade urbana também precisa contemplar a neurodiversidade. Pessoas com autismo e outras condições neurodivergentes enfrentam barreiras invisíveis, mas igualmente excludentes: buzinas, lotações, ambientes hostis e ausência de profissionais capacitados tornam o deslocamento urbano um verdadeiro desafio sensorial e emocional.

O conceito de neurodiversidade reforça a importância de ambientes urbanos que respeitem diferentes formas de ser, perceber e se comunicar. Espaços silenciosos, sinalizações visuais, profissionais treinados e protocolos de atendimento humanizado são parte essencial de um sistema urbano verdadeiramente acessível.

Dimensão emocional e humana da acessibilidade

A falta de acessibilidade não é apenas um entrave físico. Ela corrói a autoestima, alimenta o isolamento social e reforça a ideia de que a pessoa com deficiência é um “fardo” para a sociedade. Não à toa, os índices de depressão, ansiedade e abandono escolar são significativamente maiores entre pessoas com deficiência, segundo estudos da Organização Mundial da Saúde.

Garantir mobilidade urbana acessível é, portanto, um ato de cuidado coletivo, um compromisso com a dignidade humana e uma ferramenta concreta para combater a exclusão social.

Enfoque jurídico: direitos não são favores

A Constituição Federal de 1988 assegura, no artigo 5º, o direito à igualdade e, no artigo 227, a prioridade absoluta às pessoas com deficiência no acesso a políticas públicas. Já a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) prevê em seu artigo 46 que “o direito ao transporte e à mobilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida será assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, por meio de identificação e de eliminação de todos os obstáculos e barreiras ao seu acesso”.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com status de norma constitucional no Brasil, também estabelece a mobilidade pessoal como um direito fundamental. De acordo com seu artigo 9º, os Estados devem adotar medidas apropriadas para assegurar à pessoa com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades, ao ambiente físico, aos transportes e às instalações públicas e privadas.

Papel do Poder Público e da Sociedade na Promoção da Mobilidade Acessível

Garantir a mobilidade urbana acessível não é apenas uma questão técnica, mas um compromisso jurídico e social que envolve todos os atores da sociedade. O poder público possui o dever constitucional e legal de eliminar barreiras arquitetônicas, urbanísticas e de comunicação, assegurando o direito das pessoas com deficiência ao transporte e à circulação, conforme estabelece o artigo 46 da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015):

“O direito ao transporte e à mobilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida será assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, por meio de identificação e de eliminação de todos os obstáculos e barreiras ao seu acesso.”

Esse dever implica não apenas a adequação da infraestrutura urbana, mas também o planejamento orçamentário, a fiscalização efetiva e a elaboração de políticas públicas inclusivas, com participação ativa das pessoas com deficiência. A responsabilidade do poder público é inafastável, conforme já reiterado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que afasta a alegação da “reserva do possível” diante da garantia do mínimo existencial.

Por outro lado, a sociedade civil, incluindo empresas, organizações e cidadãos, também tem papel fundamental na construção de uma cultura inclusiva. O setor privado deve incorporar práticas de responsabilidade social e governança alinhadas aos princípios ESG, promovendo acessibilidade em seus empreendimentos e serviços. A conscientização social e a mobilização comunitária são indispensáveis para a superação das barreiras atitudinais e a garantia do respeito à diversidade.

Somente com essa atuação conjunta e coordenada será possível construir cidades verdadeiramente inclusivas, onde o direito ao ir e vir seja uma realidade para todas as pessoas, independentemente de suas condições físicas ou cognitivas.

Doutrina

Corroborando tais afirmações, Barcellos (2012, p.177) afirma que a acessibilidade tem um caráter combatente das barreiras sociais, não se restringindo apenas às físicas, mas abrangendo também informação, serviços e transporte, com o objetivo de assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, às condições necessárias para a plena e independente fruição de suas potencialidades e do convívio social:

“[…] a adoção de um conjunto de medidas capazes de eliminar todas as barreiras sociais – não apenas físicas, mas também de informação, serviços, transporte, entre outras – de modo a assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, às condições necessárias para a plena e independente fruição de suas potencialidades e do convívio social.”

Além disso, a jurista Flávia Piovesan destaca que “os direitos das pessoas com deficiência têm natureza de direitos fundamentais, integrantes do núcleo essencial da dignidade humana e não podem ser considerados privilégios ou favores do Estado” (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 203).

Jurisprudência

A jurisprudência brasileira confirma essa compreensão. No Recurso Especial (REsp) 1.607.472-PE, o Superior Tribunal de Justiça firmou:

“É essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, o direito de pessoas com necessidades especiais* poderem frequentar universidade pública, razão pela qual não pode a instituição alegar a incidência da cláusula da reserva do possível como justificativa para sua omissão em providenciar a conclusão de obras de adaptação em suas edificações e instalações.” (Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 11/10/2016)

\* Termo do texto original (atualmente considerado inadequado); leia‑se “pessoas com deficiência”.

Embora o caso envolvesse universidade pública, o STJ deixou claro que acessibilidade integra o mínimo existencial. Portanto, as mesmas razões se aplicam à mobilidade urbana, afastando a reserva do possível como justificativa para omissões do poder público.

ESG, responsabilidade social e planejamento urbano

Mobilidade urbana inclusiva é também uma questão de responsabilidade social. Empresas e governos têm o dever de aplicar o conceito de ESG (Environmental, Social and Governance) de forma concreta, e não apenas como retórica. Um sistema de transporte público que marginaliza pessoas com deficiência viola o critério “Social” do ESG e expõe a sociedade a riscos de judicialização, imagem negativa e perda de confiança pública.

Investir em acessibilidade é, portanto, estratégico e necessário, alinhando direitos humanos à governança responsável e sustentável.

Conclusão: não há cidade inteligente sem inclusão

Não há como falar em cidades inteligentes, sustentáveis ou modernas se seus moradores não conseguem transitar com segurança e dignidade. A mobilidade urbana inclusiva precisa ser tratada como política de Estado, com orçamento definido, metas claras e participação ativa das pessoas com deficiência na formulação das soluções.

A acessibilidade é um direito. E mais do que isso: é o alicerce para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e igualitária.

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Igor Lima

Igor Lima da Cruz Gomes é advogado, colunista do site Jornalista Inclusivo, pós-graduado em Direitos Humanos e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência. É autor da coletânea “Deficiência e os Desafios para uma Sociedade Inclusiva”, obra citada no STF, na Unesp e em instituições como Harvard e Coimbra. Siga no Instagram @igorlima1898.

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