Envelhecer é um privilégio, e para quem vive com uma deficiência, esse processo pode vir acompanhado de desafios que poucas pessoas enxergam.
Por Raiza Taquari e Igor Lima
O envelhecimento é uma fase natural da vida, marcada por mudanças físicas, emocionais e sociais. Para algumas pessoas com deficiência, esse processo pode ser ainda mais complexo. A sociedade, muitas vezes, não está preparada para lidar com essa dupla condição — o envelhecer e a deficiência — o que gera invisibilidade, exclusão e falta de políticas públicas inclusivas e adequadas.
A deficiência não se resume à limitação física, intelectual ou mental de uma pessoa. Ela também está relacionada às barreiras que a sociedade impõe — como falta de acessibilidade, o preconceito, a exclusão. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência , da ONU, reforça que a deficiência surge da interação entre a condição da pessoa e o ambiente em que ela vive.
A Invisibilidade Cotidiana
Pessoas com deficiência enfrentam barreiras no acesso à saúde, educação, trabalho e lazer. Quando envelhecem, essas barreiras se multiplicam. É comum que suas necessidades sejam ignoradas ou confundidas com as de pessoas idosas que não têm deficiência, o que muitas vezes compromete o atendimento adequado e o respeito à sua autonomia.
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Além disso, há uma ideia equivocada de que pessoas com deficiência “não envelhecem” — como se fossem eternamente jovens ou como se o envelhecimento não fosse relevante para elas. Essa visão contribui para a falta de dados, pesquisas e políticas específicas para esse grupo.
Reflexão: quem está olhando para essa realidade?
Quantas vezes você viu campanhas sobre envelhecimento que incluíssem pessoas com deficiência? E quantas vezes viu políticas voltadas para pessoas com deficiência que considerassem o envelhecimento como parte da equação?
A dupla vulnerabilidade — ser uma pessoa idosa e ter uma deficiência — exige um olhar mais atento, mais humano e mais inclusivo. Não se trata apenas de garantir acessibilidade física, mas também de promover respeito, escuta e protagonismo.
Realidade Brasileira
Apesar dos avanços nas leis e nas políticas públicas voltadas tanto para pessoas idosas quanto para pessoas com deficiência, ainda há um grande vazio quando essas duas condições se encontram. A realidade de quem envelhece com deficiência é marcada por múltiplas barreiras — físicas, sociais, econômicas e até afetivas — que muitas vezes são ignoradas.
Essas pessoas enfrentam dificuldades para acessar serviços básicos, como saúde, transporte e moradia adequada. Muitos espaços públicos ainda não são acessíveis, e os profissionais de saúde nem sempre estão preparados para lidar com as necessidades específicas desse grupo. Além disso, há uma falta de dados e pesquisas que tratem dessa população de forma específica, o que contribui para sua invisibilidade.
Outro ponto importante é o preconceito. A pessoa idosa com deficiência muitas vezes é visto como alguém “incapaz” ou “inútil”, o que reforça sua exclusão. Essa visão reforça estigmas e impede que essas pessoas participem ativamente da sociedade, como cidadãos com direitos e voz.
As políticas públicas, quando existem, costumam tratar o envelhecimento e a deficiência separadamente. Isso faz com que as soluções sejam incompletas e ineficazes para quem vive as duas realidades ao mesmo tempo. É preciso reconhecer essa sobreposição de vulnerabilidades para que as ações sejam realmente inclusivas.

Envelhecimento
O envelhecimento é um processo natural e contínuo, que envolve mudanças físicas, emocionais e sociais. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), envelhecer com qualidade significa manter a autonomia, a saúde e a participação ativa na sociedade. No Brasil, o número de pessoas com mais de 60 anos cresce rapidamente, o que exige atenção especial às suas necessidades e direitos.
Deficiência
A deficiência não se resume à limitação física ou mental de uma pessoa. Ela também está relacionada às barreiras que a sociedade impõe — como falta de acessibilidade, preconceito e exclusão. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, reforça que a deficiência surge da interação entre a condição da pessoa e o ambiente em que ela vive.
Desafios na Saúde e na Reabilitação
O acesso à saúde é um dos pilares para garantir um envelhecimento digno e inclusivo. No entanto, as pessoas com deficiência idosas enfrentam obstáculos significativos nesse campo. A falta de capacitação de profissionais para lidar com as especificidades dessa população resulta em diagnósticos tardios, tratamentos inadequados e, muitas vezes, na negligência de suas reais demandas.
Os serviços de reabilitação, essenciais para manutenção da funcionalidade e autonomia, são escassos e frequentemente voltados apenas a pessoas mais jovens. É fundamental compreender que a reabilitação deve ser contínua, adaptando-se ao processo de envelhecimento e às novas condições físicas e cognitivas que podem surgir. A ausência dessa continuidade aumenta a dependência e reduz a qualidade de vida.
A Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa e a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência foram conquistas importantes, mas ainda caminham em paralelo. É urgente que sejam articuladas, de modo a atender à intersecção dessas duas condições — o envelhecer e a deficiência — de forma integral e humanizada.
Dimensão Econômica e o Direito à Autonomia
O envelhecimento com deficiência também apresenta desafios econômicos expressivos. Muitos idosos com deficiência vivem apenas com benefícios assistenciais, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o que limita a possibilidade de acesso a serviços de saúde, transporte e lazer adequados. A vulnerabilidade econômica é agravada pelo capacitismo estrutural, que ao longo da vida restringe oportunidades de estudo e emprego.
Além disso, há um aspecto simbólico e jurídico importante: o direito à autonomia. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência reconhece o direito à vida independente e à inclusão na comunidade. Isso implica que o Estado deve garantir não apenas o sustento básico, mas também condições reais para o exercício da liberdade de escolha, da mobilidade e da convivência social.
Envelhecer com deficiência, portanto, não deve significar dependência absoluta, mas sim a possibilidade de envelhecer com dignidade, com apoio e não com tutela.

Capacitismo e Etarismo: Duas Faces da Exclusão
O preconceito contra pessoas com deficiência (capacitismo) e contra pessoas idosas (etarismo) são expressões de uma mesma lógica excludente: a que valoriza apenas corpos produtivos e jovens. Quando essas duas formas de discriminação se encontram, o resultado é o apagamento social de um grupo inteiro de pessoas.
O capacitismo se manifesta quando a sociedade associa valor à “normalidade” física e mental, enquanto o etarismo reduz o idoso à ideia de inutilidade. Para quem é idoso e tem deficiência, a exclusão se torna dupla: são vistos como “pesos” e não como cidadãos de direitos.
Combater essa dupla exclusão exige mudanças culturais profundas. É necessário promover representatividade na mídia, nas campanhas públicas e nas políticas de inclusão, garantindo que pessoas idosas com deficiência sejam vistas, ouvidas e valorizadas.
O Direito de Existir com Dignidade: Ética, Empatia e Justiça Social
Envelhecer com deficiência é, antes de tudo, uma questão de dignidade. É o direito de existir sem ser reduzido à dor, à dependência ou à invisibilidade. A ética da empatia deve ser o alicerce das políticas públicas e das relações sociais.
Cada rampa construída, cada atendimento humanizado, cada espaço cultural acessível é, na verdade, um ato de justiça social — um reconhecimento do outro como sujeito pleno de direitos.
A verdadeira inclusão não se limita à ausência de barreiras físicas, mas envolve o compromisso moral de enxergar o outro em sua integralidade. O desafio está em compreender que o envelhecimento com deficiência não é uma anomalia a ser corrigida, mas uma expressão legítima da diversidade humana.
Entre o Cuidar e o Ser Cuidado: Desafios da Autonomia na Velhice com Deficiência
O envelhecer com deficiência muitas vezes é marcado por uma tensão constante entre o cuidar e o ser cuidado. A busca por autonomia não exclui o direito ao amparo. É preciso compreender que depender de alguém não é sinônimo de incapacidade, mas de humanidade compartilhada.
Famílias, Estado e sociedade devem dividir a responsabilidade do cuidado, garantindo liberdade com suporte, e não tutela. O cuidado deve ser expressão de solidariedade, e não de controle.
A verdadeira inclusão começa quando o cuidado deixa de ser caridade e passa a ser compromisso ético e coletivo. Envelhecer com deficiência, portanto, é um chamado à empatia, à presença e ao reconhecimento de que toda vida tem valor, em qualquer fase ou condição.
Interseccionalidade e Direitos Humanos
A compreensão da dupla vulnerabilidade exige um olhar interseccional. Isso significa reconhecer que envelhecer com deficiência envolve múltiplas camadas de identidade — gênero, raça, classe social, orientação sexual, território — que se entrelaçam e moldam experiências distintas de exclusão ou privilégio.
Uma mulher negra com deficiência, por exemplo, enfrenta desafios muito diferentes de um homem branco com deficiência. A perspectiva dos Direitos Humanos impõe o dever do Estado e da sociedade de tratar cada pessoa de forma equitativa, garantindo-lhe acesso pleno a oportunidades e condições dignas de vida.
Trabalhar a interseccionalidade, portanto, é reconhecer que nenhuma política pública será verdadeiramente inclusiva se ignorar as diferenças internas do próprio grupo das pessoas idosas com deficiência.
Acessibilidade Universal e Tecnologia Assistiva
O envelhecimento com deficiência exige pensar a acessibilidade de forma ampla, indo além das barreiras arquitetônicas. A acessibilidade deve ser comunicacional, digital, atitudinal e tecnológica.
As tecnologias assistivas — como cadeiras de rodas motorizadas, leitores de tela, aparelhos auditivos inteligentes, próteses avançadas e domótica — são instrumentos que ampliam a autonomia e a participação social das pessoas idosas com deficiência. Contudo, o alto custo e a falta de políticas de subsídio dificultam o acesso.
O Brasil ainda carece de políticas robustas que estimulem o desenvolvimento e a distribuição equitativa dessas tecnologias. Além disso, é necessário investir na alfabetização digital inclusiva, garantindo que idosos com deficiência possam usufruir dos recursos tecnológicos disponíveis, inclusive em serviços públicos essenciais, como agendamento de consultas e acesso a benefícios sociais.
A acessibilidade, nesse contexto, não é favor — é direito, e um dos pilares da cidadania plena.
Cultura, Afeto e Pertencimento
Além das dimensões jurídicas e estruturais, é essencial falar sobre a dimensão afetiva e simbólica do envelhecimento com deficiência. A cultura brasileira ainda associa o envelhecer à perda e a deficiência à limitação. É urgente desconstruir essas visões.
A promoção da cultura inclusiva — por meio da arte, da literatura, do cinema e de campanhas públicas — ajuda a transformar a percepção social e a fortalecer o sentimento de pertencimento. O afeto, o cuidado e o reconhecimento são formas de inclusão tão necessárias quanto rampas ou leis.
Projetos comunitários, grupos de convivência e espaços culturais acessíveis podem resgatar a autoestima e a participação ativa dessas pessoas, mostrando que a velhice com deficiência pode ser também uma fase de expressão, sabedoria e potência.
Caminhos Possíveis
- Incluir pessoas com deficiência idosas nas decisões que afetam suas vidas;
- Criar políticas públicas interseccionais, que considerem as especificidades dessa população;
- Promover campanhas de conscientização que combatam o preconceito e a invisibilidade;
- Formar profissionais da saúde, assistência social e educação para lidar com essa dupla condição.
Conclusão: Envelhecimento e Deficiência
Envelhecer com deficiência não deve ser sinônimo de abandono ou invisibilidade. É preciso reconhecer que essas pessoas existem, resistem e têm muito a contribuir. Que possamos construir uma sociedade que acolha todas as fases da vida, com todas as suas diversidades.
O envelhecimento com deficiência precisa ser visto como parte da nossa humanidade — uma etapa que merece respeito, políticas eficazes e, acima de tudo, sensibilidade. Uma sociedade verdadeiramente inclusiva é aquela que cuida de todos, em todas as idades e condições.

Raiza Da Cruz Santos De Oliveira Taquari
Residente Jurídica e atua na defesa dos direitos das pessoas com deficiência, com foco em inclusão e justiça social.

Igor Lima da Cruz Gomes
Pós-graduado em Direitos Humanos e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência. É autor da coletânea “Deficiência e os Desafios para uma Sociedade Inclusiva”.
