O silêncio da escola e o direito da criança com deficiência ser ouvida na inclusão escolar

Crianças com deficiência em sala de aula, sentadas em carteiras, participando de uma atividade de escrita com apoio de uma professora ao fundo, transmitindo um ambiente de inclusão escolar. (Créditos: Depositphotos)

Legenda descritiva: Crianças com deficiência em sala de aula, sentadas em carteiras, participando de uma atividade de escrita com apoio de uma professora ao fundo, transmitindo um ambiente de inclusão escolar. (Créditos: Depositphotos)

“Incluir é escutar — com atenção, com tempo e com respeito.”

 

Enquanto o país vive o recesso escolar, muitas crianças com deficiência seguem sendo vítimas de um silêncio persistente: o da exclusão disfarçada de presença. Estão nas salas de aula, mas fora dos planejamentos pedagógicos. Estão no espaço físico da escola, mas não na escuta da instituição. Estão incluídas no papel, mas excluídas na prática.

Esse silêncio não é apenas pedagógico. É jurídico, político e social. E precisa ser rompido.


Ícone de pessoa em cadeira de rodas, logo do site Jornalista Inclusivo.Jornalista Inclusivo também está no WhatsApp!

Acesse o canal e acompanhe as nossas atualizações.

A origem do problema: inclusão que não ouve é inclusão incompleta

Durante décadas, pessoas com deficiência foram institucionalizadas, segregadas ou simplesmente impedidas de acessar o ambiente escolar regular. Com a Constituição de 1988 e, mais recentemente, com a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015 ), consolidou-se o entendimento de que a educação inclusiva não é uma política opcional: é um direito fundamental.

Mas esse direito vai além do acesso físico. Inclui o direito de ser ouvido e levado em conta.

O artigo 28 da LBI afirma que a oferta da educação deve garantir condições de acessibilidade e recursos de apoio, promovendo o desenvolvimento pleno da pessoa com deficiência. O que muitas vezes se esquece é que essa promoção passa por um elemento essencial: a escuta ativa e qualificada da criança.

Base jurídica da escuta: ouvir é dever do Estado, não gentileza da escola

A Constituição Federal, ao afirmar em seu artigo 227 que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito à educação e à dignidade, vincula a escuta ao respeito pleno à cidadania infantil.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que as decisões que envolvam crianças devem respeitar seu direito de opinião e participação. A doutrina da proteção integral, consagrada no ECA e na jurisprudência constitucional, exige que a criança seja tratada como sujeito de direitos.

Já a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com status constitucional no Brasil (Decreto nº 6.949/2009 ), afirma no artigo 7º:

“As Partes adotarão todas as medidas necessárias para assegurar o pleno exercício, em igualdade de condições com as demais crianças, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais pelas crianças com deficiência.”

Essa garantia inclui o direito de expressar suas opiniões e de que essas opiniões sejam devidamente consideradas, em função de sua idade e grau de desenvolvimento.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), de 2008, consolidou, no plano administrativo e pedagógico, a diretriz de que todas as crianças, independentemente de suas condições, devem estar matriculadas em classes comuns do ensino regular, com os apoios e adaptações necessários. Ela representou uma ruptura com o modelo de ensino segregado, afirmando o princípio da convivência, do respeito às diferenças e da aprendizagem compartilhada. Essa política reconhece a necessidade de escuta ativa dos estudantes público-alvo da educação especial, valorizando sua participação no planejamento das estratégias de ensino, o que reforça o argumento jurídico e ético da escuta como condição de inclusão.

Educação inclusiva como meta global: o ODS 4 da Unesco

A Declaração de Incheon, firmada em 2015, base para a Agenda de Educação 2030 da Unesco, estabeleceu 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) — entre eles, o ODS 4, que determina:

“Assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.”

Esse compromisso internacional reforça que a inclusão só se concretiza com a escuta das diversas realidades humanas, especialmente aquelas historicamente marginalizadas, como a das crianças com deficiência.

Doutrina jurídica: escutar é reconhecer a dignidade da criança com deficiência

Nas palavras de Flávia Piovesan, renomada jurista de direitos humanos:

“A escuta da criança com deficiência é condição de efetividade de todos os demais direitos. Sem ouvir, não há como garantir igualdade real.”

Romeu Kazumi Sassaki, referência em inclusão, destaca que a inclusão genuína é aquela que respeita a individualidade e a autonomia da pessoa com deficiência — e isso começa, na infância, pela escuta e valorização de suas vozes.

Cláudia Werneck, autora de vasta obra sobre inclusão e comunicação, lembra que “ninguém se inclui calado” — e que a comunicação acessível e bidirecional é base para qualquer prática inclusiva de verdade.

Esses autores demonstram que o direito à escuta é a porta de entrada para a participação, a autonomia e a cidadania da criança com deficiência no espaço escolar.

O que dizem os tribunais superiores: STF e a ONU

No julgamento da ADI 5357, o Supremo Tribunal Federal declarou a obrigatoriedade da educação inclusiva, vedando normas que condicionem a matrícula de estudantes com deficiência à autorização médica. O Ministro Edson Fachin, relator, afirmou:

“A inclusão não é concessão. É expressão do princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade material.”

Esse entendimento confirma que a escola deve acolher, adaptar e escutar — pois não há inclusão verdadeira sem a consideração ativa da experiência e da voz da criança.

Comitê da ONU — A escuta como base da inclusão

Na Recomendação Geral nº 4/2016, o Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência estabeleceu:

“A educação inclusiva requer que todas as pessoas com deficiência — inclusive crianças — sejam ativamente envolvidas na tomada de decisões que afetem suas vidas educacionais.”

Trata-se de um mandamento ético e jurídico: o silêncio institucional não é mais aceitável.

O capacitismo institucional: exclusão velada e simbólica

Ainda hoje, muitas escolas promovem apenas a inclusão formal, mantendo práticas de exclusão simbólica:

  • Decidem sem escutar;
  • Elaboram PEIs genéricos, sem participação da família e da criança;
  • Dificultam a participação em atividades coletivas sob justificativas supostamente protetivas.

Esse comportamento caracteriza capacitismo pedagógico e institucional. O sistema educacional, ao silenciar as crianças com deficiência, nega o seu protagonismo e viola sua dignidade.

Caminhos concretos: o que precisa ser feito pelo fim do silêncio da escola

  1. Inserir a escuta qualificada no centro do planejamento pedagógico
    – Com recursos de comunicação alternativa, Libras, pictogramas ou o que for necessário.
  2. Fazer do PEI um instrumento vivo e construído a muitas mãos
    – Envolvendo equipe técnica, família, e a criança sempre que possível.
  3. Formar docentes em direitos humanos, inclusão e ética do cuidado
    – Educação inclusiva exige preparo que vai além da técnica: exige sensibilidade e compromisso.
  4. Criar ouvidorias escolares acessíveis
    – Para garantir que alunos e famílias possam denunciar práticas excludentes.
  5. Fortalecer a atuação de Conselhos e do Ministério Público
    – Onde não há escuta, há violação — e isso exige resposta firme do Estado.

Conclusão: a escola que escuta é a que ensina com dignidade

A criança com deficiência não precisa de favores — precisa de voz. Precisa que a escola entenda que a sua opinião, ainda que não verbalizada, tem valor jurídico e ético.

A inclusão escolar exige mais do que rampas ou matrículas. Exige escuta, participação e afeto.

E só quando a escola ouve de verdade, ela se torna um espaço de justiça e transformação.

Leia também: Deficiência e os Desafios para uma Sociedade Inclusiva

Picture of Igor Lima
Igor Lima

Igor Lima da Cruz Gomes é advogado, colunista do site Jornalista Inclusivo, pós-graduado em Direitos Humanos e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência. É autor da coletânea “Deficiência e os Desafios para uma Sociedade Inclusiva”, obra citada no STF, na Unesp e em instituições como Harvard e Coimbra. Siga no Instagram @igorlima1898.

LinkedIn