Tributação sobre o cuidado invisível, injustiça fiscal afetiva e o não reconhecimento dos responsáveis de pessoas com deficiência como agentes econômicos de valor social
Por Márcio Zamboni
Advogado e pai de família atípica
Eu sempre acreditei que a tributação é mais do que números, fórmulas e legislação. A tributação fala sobre prioridades. Ela revela que país queremos ser. E, principalmente, quem estamos deixando para trás. Por ser advogado especializado em inteligência tributária, passei anos defendendo a racionalidade fiscal e eficiência arrecadatória. Atuei para empresas que sentem o peso da tributação, tendo instrumentos, recursos para questionar temas como a Tese do Século, o pagamento do imposto sobre o imposto, o que exige acesso à contratação de advogados especializados, solicitar revisões ou até mesmo restituições e mudanças no sistema tributário. No entanto, quando me reconheci dentro de uma família atípica compreendi, de forma visceral, o que significa, para pessoas físicas, viver sob um sistema tributário que não enxerga, não acolhe e não compreende a realidade de milhões de brasileiros.
Fui diagnosticado na fase adulta com TDAH, depois de acompanhar as avaliações das minhas filhas. Antes do meu laudo a minha companheira que incentivou a avaliação, teve que perseverar muito, porque lidar com as características do diagnóstico não é fácil, sobretudo, quando não se tem o conhecimento de que se trata de um diagnóstico. Por isso, a Lei 15.256/2025 , que incentiva o diagnóstico de autismo em adultos e idosos, para mim não é apenas uma conquista legislativa, é um marco civilizatório. Ela simboliza o reconhecimento de que a neurodivergência existe ao longo de toda a vida, não sendo exclusividade da infância, e que adultos também merecem cuidado, acolhimento e acesso ao diagnóstico. Há um notório avanço nos estudos, na literatura médica, e no período retroativo à essa compreensão, muitos adultos e idosos não tiveram a oportunidade de serem avaliados quando crianças.
Uma Constelação Familiar Diversa
Minha família é, como costumo dizer, uma constelação diversa:
- Minha filha mais velha, Maria Eduarda, foi a primeira a ser diagnosticada com TDAH.
- Minha filha do meio, Manuela, vive a superdotação e também o TDAH.
- Minha pequena Maitê, de quatro anos, tem Síndrome de Down e já enfrentou desafios que adultos robustos talvez não suportassem, incluindo uma cirurgia cardíaca aos cinco meses de vida.
- E meu caçula, Matheus, ainda sem diagnóstico formal, já mostra traços de neurodivergência.
Somos uma família que carrega, todos os meses, uma carga emocional, financeira muito acima da média para garantir dignidade e desenvolvimento às nossas crianças.
O Projeto de Lei 3834/2023: Justiça Fiscal como Compensação
E é justamente por isso que o Projeto de Lei 3834/2023 , que ainda tramita na Câmara dos Deputados, representa algo tão profundo para mim, não apenas como tributarista, mas como pai, como marido e como brasileiro. Se as pessoas jurídicas pagam impostos indevidos, sentem o peso da carga tributária, ao menos, têm ferramentas para buscar a mudança no entendimento tributário e a restituição de eventuais erros. Diferente da pessoa com deficiência e seus responsáveis.
A Injustiça de um Sistema Tributário “Neutro”
No Brasil, a carga tributária incide indistintamente sobre todas as camadas da sociedade. Essa frase pode parecer neutra. Mas a neutralidade tributária, quando aplicada a realidades desiguais, se transforma em injustiça concreta.
Nossa tributação é, historicamente, regressiva. Cobra proporcionalmente mais de quem tem menos. Incide sobre o consumo, e não sobre a renda. Penaliza quem está mais exposto ao cuidado, ao trabalho informal, aos serviços essenciais. É por isso que grupos que lutam pelos direitos das mulheres falam em misoginia tributária e o movimento negro denuncia o racismo tributário. Ambos têm razão. Como dito, o peso dos impostos recai sobre o consumo e não sobre a renda, e isso faz com que a população de menor poder aquisitivo, dos grupos tido como minorizados, acabem sendo mais onerados. Diversos grupos identitários levantam esse debate com força. O movimento de mulheres aponta misoginia tributária, a misoginia estrutural. O fato de produtos femininos custarem mais caros em virtude dos impostos ou mulheres terem menos acesso a mecanismos de planejamento tributário por estarem mais concentradas em trabalhos informais e de cuidado. O movimento negro, por sua vez, fala de racismo estrutural tributário, em alusão a um sistema que não reconhece a desigualdade histórica e faz com que a população negra majoritariamente das classes mais pobres pague mais impostos proporcionalmente e receba menos em retorno social.
Mas há um grupo que segue silenciado: as pessoas com deficiência e seus responsáveis. Observo que a expressão “famílias atípicas” contempla outros formatos familiares, não apenas pessoas com deficiência, existem várias nuances, por exemplo, famílias homossexuais. Neste texto, refiro-me a pessoa com deficiência. Ou seja, aqui uso o termo no sentido social, não jurídico. São aquelas que convivem com pessoas com deficiência física ou intelectual, transtornos do neurodesenvolvimento ou altas habilidades. São famílias que vivem a dupla, às vezes tripla jornada: emocional, logística e financeira. E esse custo não é opcional. Não é luxo. Não é escolha. É sobrevivência.
O Custo Invisível do Cuidado
Quem nunca viveu essa realidade dificilmente imagina o que enfrentamos. Terapias contínuas. Atendimentos multiprofissionais. Escolas acessíveis. Transporte adaptado. Equipamentos especializados. Acompanhantes terapêuticos, ainda fora da cobertura obrigatória do rol da ANS. Consultas, exames, medicamentos diferenciados. Atendimento global. E, no caso da Maitê, uma cirurgia cardíaca em seus primeiros meses de vida. Mesmo com um bom plano de saúde, a experiência foi devastadora – emocional e financeiramente. Quem precisa recorrer ao SUS lida com um drama ainda mais profundo: a falta de agenda para efetuar esses procedimentos essenciais, cirurgias, tratamentos, etc.
E aí faço a pergunta que deveria guiar qualquer política pública séria: por que o Estado tributa da mesma forma quem enfrenta necessidades absolutamente diferentes? A nossa Constituição já determina que a saúde é dever do Estado e direito de todos. No entanto, vemos que a coisa pública não consegue atender a demanda crescente de pessoas com deficiência. Desde serviços como o Atende, ressalta-se que a mobilidade também é um direito social, até o atendimento ao neurologista que aponta filas enormes, onde há relatos de mais de um ano de espera, onde às vezes nem o fechamento do laudo da avaliação neuropsicológica é possível.
Neste contexto, ponderando essas e outras variáveis, o PL 3834/2023 propõe isenção de Imposto de Renda para pessoas com deficiência e também para seus representantes legais ou provedores, quando menores ou incapacitados. Trata-se de uma iniciativa simples, lógica e profundamente alinhada ao princípio da justiça fiscal.
A lógica é direta: se o Estado não fornece integralmente os serviços que são sua obrigação constitucional – saúde, acessibilidade, terapias – então que ao menos não penalize quem está arcando com tudo isso sozinho. Isentar o Imposto de Renda não é um privilégio. É uma compensação mínima. É o reconhecimento de uma desigualdade concreta. É uma forma de devolver dignidade. Hoje, algumas isenções já existem para aposentados com doenças graves – mas são insuficientes, burocráticas e restritas. Processos levam até 10 anos para serem julgados. O projeto de lei corrige essa distorção histórica. Reduzir a carga tributária sobre essa população é garantir mais recursos para custear tratamentos e necessidades especiais.
Tributação Sobre o Cuidado Invisível: Uma Injustiça Afetiva
A Emenda Constitucional 132/23 trouxe avanços ao substituir ICMS, ISS, PIS e COFINS pelo IBS e CBS (traçando novamente um paralelo entre pessoas físicas e jurídicas, da perspectiva tributária e da conjuntura da reforma). Houve ganhos de transparência e simplificação. Mas a legislação tributária não é apenas engenharia técnica. É política de vida. A reforma contemplou isenções para tecnologias assistivas e acessibilidade — o que é um passo importante. Mas ainda falta o essencial: reconhecer que o cuidado tem custo. E que esse custo recai de forma desproporcional sobre famílias atípicas. Uma mãe solo que cuida de um filho com deficiência paga mais imposto no transporte, na saúde, na educação, na alimentação – enquanto vê sua renda diminuir porque precisa reduzir jornada, abrir mão da carreira, priorizar consultas e terapias. Isso tem nome: tributação sobre o cuidado invisível.
Se uma mulher negra, considerada base da pirâmide, lida com salários desiguais, não acesso aos níveis de poder, por ser mulher e negra, tendo o acréscimo da solidão da mulher o que faz com que ela seja arrimo de família, essa intersecção precisa ser ponderada. Se uma arrimo de família, mãe de uma criança com deficiência paga mais por amar e cuidar, então estamos diante de uma injustiça fiscal afetiva. E isso precisa entrar no debate público com a mesma força de outros movimentos identitários. Considere outro dado, de acordo com o Censo 2022, quase metade dos lares brasileiros é chefiada por mulheres, com a proporção de 49,1%, essa parte significativa da população vive o impacto direto da ausência de políticas fiscais sensíveis.
Da Incerteza à Informação que Liberta
Minha esposa e eu passamos pelo susto, pelo medo e pelas incertezas. Recebemos o diagnóstico da Maitê ainda na gestação, e não sabíamos o que esperar. Carregamos ignorância, ansiedade e insegurança. Buscar uma pediatra especializada em Síndrome de Down foi um divisor de águas. Aprendemos, acolhemos, reconhecemos o desenvolvimento possível, criamos esperança. E queremos agora que outras famílias não passem pelo mesmo desamparo informacional.

O mesmo vale para o TDAH — tanto o meu quanto o das minhas filhas. Ter acesso ao diagnóstico na fase adulta me permitiu compreender minha própria história. A Lei 15.256/2025, ao incentivar diagnósticos tardios de autismo, ecoa essa urgência de identificar, acolher e entender trajetórias inteiras que foram vividas na escuridão. Eu celebro essa lei porque ela simboliza o que sempre defendi: a informação liberta, organiza, cura. Juntamente com o diagnóstico vem o tratamento.
Responsáveis como Agentes de Valor Social
A verdadeira justiça tributária não se limita a reorganizar tributos. Ela precisa ser sensível às vulnerabilidades. Precisa enxergar quem cuida, quem sustenta, quem se desdobra. Os responsáveis por pessoas com deficiência são agentes econômicos de valor social. Permitem que vidas floresçam apesar da ausência do Estado. Eles merecem:
- Isenções;
- Deduções específicas;
- Processos simplificados;
- Prioridade fiscal;
- Políticas públicas que reconheçam o custo do cuidado.
Isso não é benevolência. É justiça.
Empatia como Política Pública
Se queremos um país verdadeiramente humano, precisamos olhar para além das métricas econômicas. Uma nação se mede por como cuida de quem mais precisa e por como reconhece e apoia quem realiza esse cuidado diariamente. Continuarei defendendo esse projeto porque ele representa o que há de mais essencial em qualquer sistema tributário digno: empatia transformada em política pública.
Sejamos claros: o sistema tributário brasileiro, quando ignora essas famílias, não é neutro. É cruel. O PL 3834/2023 é uma chance de romper esse ciclo. É reparação. É reconhecimento. É racionalidade fiscal. É humanidade. E, acima de tudo, é um caminho para que famílias, como a minha, e como tantas outras possam viver com mais dignidade, menos medo e mais justiça.
Sobre o autor:
Márcio Zamboni é advogado, formado na Universidade Paulista, pós-graduado em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura (EPM), instituição onde também estudou Direito Processual Penal, e pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera.
