Descrição da imagem #PraCegoVer: Foto com Amanda Ganzarolli e grupo que participou da oficina do jornalista e doutorando Felipe Collar Berni ↗, à esquerda. Projeção de imagem à direita, com o tema “Guia para um jornalismo anticapacitista”, no 45° Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (INTERCOM), realizado na Universidade Federal da Paraíba ↗ em setembro de 2022. (Foto: Reprodução. Créditos: Acervo pessoal)
Uma análise de 28 anos do uso da deficiência como adjetivo na Folha de S.Paulo
O recente artigo de Pondé a respeito do autismo fez as mídias sociais ferverem em relação ao capacitismo explícito no jornalismo. Por outro lado, esquece-se que tal comportamento é antigo e recorrente, não somente na Folha, mas em muitos veículos de imprensa e na mídia como um todo. De maneira simples, vou mostrar como a Folha, o jornal com a maior média mensal de assinaturas, tem feito isso há quase três décadas.
Com a orientação da jornalista e professora Cilene Victor, referência na área do Jornalismo Humanitário, escolhi o capacitismo no jornal Folha de S.Paulo como objeto de um estudo que apresentei no 45° Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (INTERCOM) ↗, realizado na Universidade Federal da Paraíba ↗, em setembro de 2022. O Intercom um dos principais eventos acadêmicos e científicos da área da comunicação.
Percebe-se que mesmo com manifestações nas redes sociais questionando e repudiando o uso da deficiência como adjetivação nas redações jornalísticas, essa é uma prática muitas vezes justificada, mesmo que ela esteja na contramão dos Manuais de Redação, como no caso da própria Folha. O capacitismo no jornalismo e na mídia ocorre todos os dias, porém, alguns casos ganham mais repercussão, como o de Pondé em seu artigo O diagnóstico de autismo se transformou numa tendência de estilo hype ↗, publicado em agosto de 2022. A minha análise mostrou que Pondé nunca esteve sozinho nessa abordagem capacitista.
A comunidade autista no Instagram manifestou seu descontentamento em relação à postura não somente do articulista da Folha, mas principalmente da posição do jornalismo como um todo. E a comunidade autista não está errada. Perfis como o de Carol Souza, autista e usuária de Comunicação Aumentativa, foi um deles, que descreveu o texto do filósofo como tão repleto de absurdos “que faltará caracteres para comentar sobre cada um deles detalhadamente ↗“. Essa prática adotada por muitos profissionais da área da comunicação é contrária ao Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e, naturalmente, fere os direitos humanos da pessoa com deficiência. Em minha análise, para me concentrar em um recorte, escolhi a palavra autismo para filtrar as matérias no portal da Folha. O levantamento, que considerou o período de 1994 a 2022, ou seja, 28 anos, resultou em 827 matérias. A partir desse resultado, adotei 35 classificações que não serão expostas aqui para facilitar a compreensão. Além de focar no que foi pautado pelo veículo, o ponto central da minha pesquisa foi a defesa de que há uma urgência nas redações jornalísticas quando abordam a temática da deficiência que consiste em trocar o “que” cobrir pelo “como” cobrir. Este é um dos princípios do Jornalismo Humanitário Inclusivo, a base na qual foi construída minha pesquisa.
Das 827 matérias que analisei, 294 (44,48%) fizeram uso de abordagem capacitista. E destas, 222 (75,51%) foram de autoria dos profissionais do próprio veículo. Para ficar mais compreensível, significa dizer que a fala capacitista teve como fonte o próprio jornalista e não um discurso de fora, como mostro no exemplo a seguir.
Autor: Luiz Carlos Mendonça De Barros, engenheiro e economista
Data: 28/06/2022
Trecho do texto: Mas o governo continuou na sua posição autista e imperial em relação à sociedade. Apertou ainda mais as metas de inflação, decidiu implantar um novo regime de liquidação de pagamentos no sistema financeiro, liberou a Petrobras de qualquer regra na fixação dos preços dos derivados de petróleo e resolveu devolver antecipadamente US$ 4 bilhões ao FMI.
A classificação para a análise de matérias capacitistas teve como base a maneira como as pautas foram construídas, em outras palavras, a abordagem do conteúdo, amparada nos preceitos do Jornalismo Humanitário Inclusivo. Foram usadas como diretriz para a análise as seguintes expressões que denotam capacitismo: sofre de autismo; exemplo de superação; normal como os outros; vida normal; quase autista; trajetória autista; problema do autismo; vítima do autismo e também descrições incorretas a respeito do TEA contrárias ao DSM-5.
Significa dizer que a adjetivação do autismo ou a mensagem discriminatória da deficiência em outros contextos teve origem na própria redação da Folha. A Folha de S.Paulo tem como padrão ter autores diversos para artigos de opinião, como no caso de Pondé, cuja área é a filosofia e não o jornalismo. Em meu estudo isso também foi quantificado. Observou-se que pessoas de diversos segmentos escreveram as matérias que trouxeram um discurso capacitista, ao usar a palavra autismo para menosprezar algo ou alguém. Dentro desse grupo, os profissionais identificados na assinatura do texto, como sendo jornalistas, equivalem a 44% das notícias. A análise quantitativa traz pistas importantes de como o jornalismo tem atuado na cobertura de temas dessa natureza, quando os direitos humanos estão no centro da temática. Ao adotar abordagens capacitistas e conferir visibilidade a fontes diversas e menos aos protagonistas da temática da deficiência, como os autistas, o jornalismo vai na contramão do seu papel social. Os donos das falas capacitistas externas ou dos colunistas representam a sociedade que exclui, quando deveria incluir, não apenas por respeito, mas por dever. Professores, parlamentares, sociólogos, advogados, promotores, humoristas, empresários, escritores, policiais, atores, desembargadores, designers, filósofos, historiadores, marqueteiros, ministros, músicos, pintores, psicólogos, psiquiatras revelam que a origem do capacitismo pode vir de várias partes de um povo, trazendo à tona o não cumprimento de leis que protegem a dignidade de pessoas com deficiência.
O artigo de Pondé foi publicado após a finalização da minha pesquisa, caso contrário, teria feito parte da estatística. A diferença que vejo neste caso específico é que houve uma posição do veículo que rebateu o conteúdo por meio de outros artigos, como no texto de Vanessa Ziotti ↗. Nos 28 anos em que analisei, identifiquei apenas uma crítica ao uso inadequado da palavra autismo nas matérias capacitistas da Folha. Escrito pelo jornalista Luiz Fernando Vianna em 2006 e publicado na coluna de opinião, o texto breve, de 269 palavras, intitulado O autismo e a política ↗, relata acontecimentos repletos de capacitismo dentro da política e da imprensa brasileira. Destaca-se o seguinte parágrafo:
Chamar Lula, o governo ou a equipe econômica de autista virou bordão na boca de colunistas de jornal (inclusive deste), empresários como Benjamin Steinbruch, políticos como Aécio Neves, Gustavo Krause e José Carlos Aleluia, intelectuais como Marilena Chaui, Renato Lessa e Luiz Carlos Mendonça de Barros, e políticos que já foram intelectuais como Fernando Henrique Cardoso. Nunca se ouviu desses seres públicos qualquer palavra no sentido de construir algo em prol dos autistas, embora a síndrome atinge uma em cada mil crianças nascidas no mundo, o desinteresse deles ajuda a entender por que jamais se fez um levantamento no Brasil. Mas, na hora de esbanjar ignorância e crueldade, eles não falharam (VIANNA, 2006, online).
O levantamento de uma única fala, de autoria de um colunista, que critica um texto publicado no jornal ao usar o autismo como adjetivo, demonstra a falta de preocupação do veículo para debater temáticas que envolvam o capacitismo. Ao se expressar usando uma deficiência como adjetivo, o jornalista parece não ter conhecimento e preparo para lidar com essa temática, diferentemente do que ocorre em relação a outras áreas e assuntos, como economia, política e esporte. Da mesma forma que os comunicadores se preparam para produzir conteúdos diversos, observou-se na minha pesquisa o não reconhecimento e valorização das pessoas com deficiência na grande maioria das matérias levantadas. O perfil dos textos na Folha de S.Paulo evidencia o capacitismo e a naturalização de como ele acontece dentro da cobertura midiática. Uma amostra está no parágrafo a seguir, parte da resposta da Folha à repercussão que gerou 440 comentários no blog e Facebook do jornal como descontentamento à adjetivação usada pelo jornalista Jairo Marques para se referir aos autistas como “povão tchubirube ↗“, desconsiderando a Lei n.º 13.146 de 2015, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que prevê punição para atos discriminatórios contra pessoas com deficiência:
Em resposta à crítica de Luciana, a direção da Folha ressalta a importância de garantir a liberdade dos colunistas. “O jornal entende que o assunto é sensível e tenta tratá-lo com a delicadeza que ele merece. Mas os colunistas são livres para expressarem suas opiniões, na linguagem que os leitores se acostumaram. No caso do Jairo, leveza e descontração são a marca registrada de suas intervenções”, diz o editor-executivo Sérgio Dávila (FOLHA DE S.PAULO, 2013, online).
O erro grave nessa resposta é que o jeito do jornalista deveria acabar quando ele usa de adjetivos em relação às pessoas com deficiência. É inaceitável que qualquer veículo de comunicação, representado pelos seus diretores, utilizem de suas vozes para justificarem tais atos como admissíveis. O resultado desses comportamentos nas redações é consequência do descaso em não trabalhar os temas nas universidades. Não há disciplinas que discutam o assunto da adjetivação indevida das deficiências nos cursos de jornalismo. Não há debates, simpósios ou qualquer outro evento que tenha como foco o impacto da comunicação social na subrepresentação midiática da pessoa com deficiência. Os próprios Congressos de Comunicação não abordam a temática. Existe uma série de orientações para determinadas coberturas, mas nenhuma sobre PcD.
Como jornalista, essa situação me causa constrangimento. Como mãe de uma criança com deficiência, sinto indignação. Acredito que é assim que todos deveriam se sentir. Caso isso não esteja acontecendo com você, te convido a erguer-se e se posicionar.
Posicione-se em sua linha fina,
Posicione-se em seu lead,
Posicione-se ao fazer a sua passagem,
Posicione-se na gravação do seu off,
Posicione-se ao criar o seu título,
Posicione-se na construção da cabeça da matéria,
Na dúvida, lembre-se do básico: deficiência não é adjetivo.
- Link para o artigo acadêmico apresentado no Congresso do Intercom “O JORNALISMO HUMANITÁRIO INCLUSIVO COMO ALTERNATIVA À ABORDAGEM CAPACITISTA DO AUTISMO”: https://www.portalintercom.org.br/anais/nacional2022/resumo/0711202210021162cc1f53a4907 ↗
Amanda Ganzarolli
Jornalista e mestranda em Comunicação Social com foco em pessoas com deficiência em situação de refúgio, na área de comunicação comunitária, territórios de cidadania e desenvolvimento pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Também é Membro do grupo de pesquisa Jornalismo Humanitário e Media Interventions (HumanizaCom) e diretora voluntária de Assuntos Públicos do programa mundial de ajuda humanitária Mãos que Ajudam, na região do Morumbi (SP). É mãe do Davi, de 4 anos, que está dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA).